Diário do Alentejo

Escolher palavras
Opinião

Escolher palavras

Vítor Encarnação

07 de dezembro 2024 - 08:00

Tenho uma folha branca à minha frente e tenho uma boca vazia dentro do meu corpo. Preciso de preencher uma ou outra, às vezes as duas, as coisas estão ligadas, o vácuo da folha é igual à lacuna da boca, entre essas duas omissões não há diferenças. São dois espaços ocos, duas ausências, dois silêncios à espera de palavras. Eu sei que algures há palavras que me servem, eu sei que se procurar as hei de encontrar dentro de mim ou fora de mim. Às vezes é esse o verdadeiro problema, procuro em mim o que não está em mim e procuro fora de mim o que afinal está em mim. Sou uma ponte entre a realidade e aquilo que percebo dela, debaixo dessa ponte passam palavras que eu não consigo pescar para dar de comer à folha e à boca. Outras vezes o céu está tão baixinho que as nuvens se conseguem apanhar à mão e o sol é uma laranja que se descasca com a língua. A minha língua é portuguesa mas não é fácil explicar isto às pessoas que só veem o céu lá no alto. Encontrar palavras para explicar as diferenças óbvias das duas alturas do céu é muito difícil, principalmente se o fogo da poesia ferver na folha e tivermos a boca cheia de pássaros. As palavras surgirão, as palavras que encaixam nos meus buracos hão de aparecer quando for de noite, há palavras que só encontram o seu caminho de noite, chegam à hora em que eu finalmente solto o meu alfabeto. Tenho um alfabeto que está preso em casa o dia inteiro, só assim é que eu consigo governar a vida. Mas depois de jantar abro-lhe a porta da ideia, deixo-o ir para cima da folha e para dentro da boca. E quando dou por mim estão lá as palavras que eu queria. 

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