Diário do Alentejo

A voz: o fundamental do cante
Opinião

A voz: o fundamental do cante

Francisco Torrão, cantador e mestre ensaiador

27 de novembro 2024 - 18:00

Foto | Ricardo Zambujo

 

Etimologicamente não vamos tecer considerações sobra a matéria, dadas as limitações que nos obrigam a que outros, mais doutos, a ela se refiram. Vamos, tão-somente, debruçar-nos sobre o cante alentejano, suas origens e atualidade. Tão vasta tem sido a sua historiografia, metodológica, científica, e, no entanto, as dúvidas subsistem, não se verificando que as teses defendidas tenham substância que congreguem opiniões.

Do conhecimento que nos foi transmitido pelos nossos antepassados e pela experiência colhida no terreno, registamos estar perante uma forma de expressão musical/popular sem paralelo, a nível nacional e internacional (passe o arrojo da última palavra). Tínhamos seis anos quando, pela primeira vez, acompanhámos (em 1953) o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa. A partir daí jamais deixámos de acompanhar o cante, em variadíssimas situações, convivendo com os grupos do concelho de Serpa e de outras terras que, até hoje, bem dignificam esta forma singular de expressão musical.

Não particularizando a matéria, o convívio granjeado ao longo dos anos com tantos e bons cantadores (felizmente temos jovens que irão perpetuar o cante) permite-nos afirmar que o respeito manifestado por esta forma de expressão musical é testemunhado por todos os grupos que tiveram a oportunidade de atuar além-fronteiras, inclusivamente, ganhando certames.

A candidatura do cante a Património Cultural Imaterial da Humanidade, aceite, arrojada e enaltecedora dos nossos valores culturais, que não se revêm somente nos aspetos gastronómicos, arquiteturais e monumentais, é um motivo de orgulho para os alentejanos. Vamos refletir sobre o que entretanto se passou, perspetivando o cante, as suas tendências. Verificamos o aparecimento de novas formas de interpretação, cantautores, recolhendo, não inovando, limitando-se a aproveitar o “nosso património”. Por outro lado, veem-se grupos corais, já com bastante experiência, adaptando as modas ancestrais, com “poemas” adequados às suas aldeias, vilas, cidades, nada tendo a ver com o plano de salvaguarda entregue na Unesco. Assiste-se, ainda, a uma proliferação de grupos corais/instrumentais, muitos deles recorrendo a elementos pertencentes aos grupos tradicionais, traduzindo-se numa mescla de estilos, nada adequada à essência do cante a vozes, sem auxílio de “artefactos”. A propósito do anteriormente referido: o cante está, atualmente, “afadistado”, a nossa forma de cantar é diferente. Antes era só a cappella, a não ser em determinadas situações – casamentos, batizados, romarias, em que lá apareciam a “flaita”, a concertina, a viola. Quando, no século XX, aparecem os grupos corais, o único instrumento era a “goela”.

E é a voz, passados, agora, 10 anos do reconhecimento da Unesco, que tem de continuar a ser considerado como o instrumento, fundamental, do cante alentejano.

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