Em novembro de 2014 a Unesco inscreveu o cante alentejano na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial.Não estarei longe da verdade, ao afirmar, que foi a inscrição do património imaterial que mais repercussão teve em Portugal. Diversas razões houve. O acaso de ser em Paris a reunião do comité, a viagem de autocarro, que levou de Serpa a Paris não apenas o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, como a edilidade e diversos jornalistas.
A viagem, seguida em direto, teve um importante papel na receção que esta inscrição teve no nosso país, e, em particular, no Alentejo.
Esta viagem, e a revolução que o Alentejo estava a ter enquanto destino turístico e produtor vinícola, são fatores determinantes na forma como hoje não só olhamos o cante, mas, sobretudo, esta região.
Importa ter presente o papel determinante que a inscrição teve na criação, ou melhor, na refundação do sul mediterrâneo enquanto produto turístico. Ou seja, um território económico que procurava uma identidade para se posicionar também enquanto destino cultural. Este “selo” da Unesco, e os que se seguiram, foram fundamentais para esta estratégia. Uma estratégia da economia em que a cultura, e os seus agentes, nunca tiveram, e que foi agenciada pelo turismo.
Presente isto, importa, como nestes 10 anos, perceber as narrativas e as estratégias que impedem sobre o cante.Não surgiram, infelizmente, nestes 10 anos, trabalhos e reflexões que partissem de um olhar de gestão patrimonial. O que foram sendo construídas foram narrativas, algumas interessantes, mas “presas” à crítica em torno da patrimonialização ou turistificação do cante. Associando esta crítica a uma mitificação do passado, onde a subalternidade e uma história, em muito imaginada, liga-o à resistência contra o fascismo.
A esta ausência, nota-se também a falta da crítica sobre quem somos, que identidade temos, ou imaginamos, e qual o papel que o cante aí ocupa.
Por outro lado, não temos, nem tivemos, uma estrutura que organize informação e a disponibilize, que olhe para o cante, e para outras manifestações, e que reúna informação e sobre elas crie propostas e estratégias de salvaguarda. Nada se sabe sobre a aplicação do plano de salvaguarda. O que foi feito, como o foi, o que era expectável, e quais os impactos e resultados. Aliás, e isso é muito notório nestas comemorações, não existiu uma comemoração regional, houve, sim, uma comemoração municipal, paroquial. E esta comemoração nem soube tornar-se universal, dialogando com o Mundo. E feriu os pilares da convenção na ausência dos detentores.
(Há uma fotografia extraordinária: o Turismo do Alentejo reunido, em Beja, com municípios para falarem sobre a programação do cante. Não se visualiza nenhum grupo ou rancho…).
Assim, as narrativas empobreceram. O que é ou não a tradição, deve o cante ter instrumentos ou não, o que é cante ou não é… Ou seja, um discurso conservador, que, numa reflexão mais profunda, é até incompatível com a própria convenção.Esta distingue-se não apenas pela valorização de bens culturais não tangíveis, mas, por duas outras marcas. A primeira é que não é coercitiva. Cabe ao detentor decidir a identidade, agenciando sobre o bem. A outra é que, sobre ela deve pender uma estratégia de salvaguarda. Uma ação, onde o promotor e o Estado criem condições para a sua sustentabilidade e transmissão. Sem esquecer toda uma ética, essencial na inscrição/aceitação por parte da Unesco.
O cante é, antes de mais, um património vivo. Ele não representa uma reconstituição histórica. É enganador olhar para um grupo coral, ou para projetos musicais, como uma representação de como era o Alentejo. O que temos é algo de hoje. E isto é a identidade do cante. Se estudarmos a sua história e o seu repertório vemos isto. O cante soube sempre reconstruir-se. Quer-se, quase sempre, afirmar como verdadeira uma imagem que foi construída a partir dos anos de 1940 na cidade de Beja.
Importa desenlaçar o canto a vozes das peias de uma visão herdeira de um olhar fascizante e dominador e deixá-lo ser vivo, em que cada um lhe pegue e faça dele algo seu. E neste pegar, o leve ao Mundo, transportando também a ética que a inscrição soube acolher e que foi exaltada pelo comité: um canto gregário, que contribui para a coesão do território e combate a exclusão social, nele tão presente.
É esta ética que falta ao cante.
Que os próximos 10 anos a saibam acolher.