A inscrição do cante alentejano na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, cujo 10.º aniversário se está a celebrar, trouxe notoriedade ao cante e satisfação à generalidade dos cantadores e cantadeiras, tendo o dia 27 de novembro de 2014 sido inscrito na sua história como uma das datas mais marcantes. O Museu do Cante Alentejano, em Serpa, tem sido um lugar privilegiado para observar os impactos causados pela visibilidade que esta inscrição trouxe.
A primeira novidade pós-classificação pela Unesco foi, sem dúvida, o interesse que despertou nos órgãos de informação, o que fez com que os cantadores e os grupos corais ganhassem, subitamente, grande notoriedade.
Nos tempos que se seguiram veio o público — curioso e interessado em ouvir cantar —, com ele as empresas de turismo, também artistas de outros géneros musicais e, entre outros, até agentes do espetáculo. O “mercado” chegou. As próprias autarquias locais, cujo apoio ao longo de décadas já tinha sido determinante para a sobrevivência de muitos grupos corais, intensificaram os patrocínios colocando o cante no centro das atenções.
O cante ganhou o mundo ou, pelo menos, o País. É claro que, entretanto, surgiu a pandemia de covid-19, cujo efeito foi tremendo, mas do qual o cante parece ter recuperado bem. Sobre esta e outras questões, a recente atualização do Inventário Nacional dos Grupos Corais — realizada pelo Museu do Cante sob coordenação de Paulo Nascimento —, que será divulgada oportunamente, tem novidades interessantes.
O cante ganhou o País e talvez o mundo, dizia, mas também se expôs e este movimento de abertura, ao mesmo tempo que o deu a conhecer, conquistando novos admiradores e novos cantadores, também o está a fazer absorver novas influências: algumas internas, introduzidas, por exemplo, pelos jovens, que parecem estar a retornar a uma prática que se revalorizou, mas também externas, trazidas por outros géneros musicais e artísticos com os quais se vai relacionando e fundindo em projetos musicais até aqui pouco habituais.
A forma de interpretar vai mudando e as canções também. Ainda que maioritariamente se continuem a cantar as modas tradicionais, vão aparecendo criações novas, algumas inspiradas nos temas de sempre, outras com novidades. O projeto Futurama, que promoveu a criação de novos poemas por autores fora deste universo, é um exemplo da entrada de novos temas, alguns dos quais foram adotados pelos grupos corais e passaram a fazer parte do seu repertório. O cante continua a ser a principal forma de expressão dos alentejanos, seja cantando modas por si criadas seja por outros, mas com as quais se identificam.
Estas mudanças, que em alguns casos estão a ser rápidas e em outros lentas ou inexistentes, não estão livres de controvérsia e, por vezes, geram-se acesas discussões. Esta é uma das provas da sua vitalidade: cante é coisa séria para muita gente e tudo se debate. Cantar “à alentejana” não é uma prática uniforme: apesar de haver uma matriz comum, é pensada, sentida e interpretada de muitas maneiras, não fossem os grupos corais também diferentes uns dos outros – tradicionalistas ou dados a experiências, da margem esquerda ou da direita, do Alentejo ou da diáspora, masculinos, femininos ou mistos, recentes ou antigos, com muitos ou poucos elementos, de meios rurais ou urbanos e, até, constituídos por alentejanos e descendentes ou por cantadores sem qualquer ligação ao Alentejo.
Aliás, a ausência de laços pessoais ou familiares com o Alentejo já vai ocorrendo: no Inventário Nacional realizado pelo Museu do Cante em 2020 havia, pelo menos, dois grupos corais nestas condições: um no Porto e outro em Paris, este só com um elemento português. Na já referida atualização de 2024, surgem mais três: um no Minho, mais outro no Porto e um terceiro numa escola da região de Sintra. Todos organizados, com ensaios regulares e sem intérpretes ligados ao Alentejo. O que quer dizer que o cante alentejano parece estar a ir para lá da característica identitária e a transformar-se num género musical atrativo para praticantes de outras regiões que dele se apropriam e começam a cantar.
Questões como estas são comuns a outros bens culturais e têm sido objeto de reflexão em diversos fóruns nacionais e internacionais. E a este respeito a Unesco tem uma posição clara: quem está em melhor posição para determinar a legitimidade ou o desvirtuamento destes patrimónios são as comunidades que os praticam.
Seja como for, e apesar do despovoamento, com mais de três mil cantadeiras e cantadores organizados em cerca de 170 grupos corais, o cante é, provavelmente, a expressão cultural mais mobilizadora do Alentejo.