Diário do Alentejo

Salvaguarda  e valorização:  10 anos perdidos
Opinião

Salvaguarda e valorização: 10 anos perdidos

José Francisco Colaço Guerreiro, coordenador do observatório do cante alentejano

25 de novembro 2024 - 11:00

Foto | Ricardo Zambujo

 

Uma pretensão inicial, apoiada pelo município de Serpa e pela Confraria do Cante Alentejano, visando a “classificação” do “cante de Serpa” como Património Cultural Imaterial da Humanidade, acabou por ser gorada ab initio, dado o facto de a Unesco “não aceitar inscrições das partes de um todo”.

Mas tal desiderato não foi esquecido e os seus mentores, sem baixarem os braços, porfiaram nos seus propósitos, tendo para isso alterado a designação do objeto da prática a inscrever, conferindo-lhe a expressão abrangente de “cante alentejano”, nos exatos termos como depois em 27/11/2014 acabou por ser aprovada e ficou inscrita na lista representativa da Unesco.

Sendo-mos apoiantes militantes da causa do cante alentejano e dos grupos corais que são, sem dúvida, o seu atual suporte anímico, desde logo nos posicionámos a favor do pretendido reconhecimento mundial para a nossa tradição vocal mais profundamente arreigada na alma alentejana. Concomitantemente, manifestámos também, publicamente, a nossa discórdia quanto à forma e o modo da elaboração da candidatura e às consequências nefastas previsíveis para o cante, em caso de sucesso sem a existência de adequados planos de salvaguarda, como, aliás, se veio a verificar.

Mas antes de passarmos a fazer algumas considerações sobre o impacto que tal galardão teve no “mundo do cante”, consideramos essencial relembrar, e que fixemos ainda a tempo, qual a definição de cante que foi aceite e está patente na lista representativa da Unesco:

“O Cante Alentejano é um género de canto tradicional em duas partes, executado por grupos corais amadores no sul de Portugal e nas comunidades migrantes na Área Metropolitana de Lisboa. O repertório é constituído por melodias e poesia oral (modas), e é executado sem instrumentos musicais. Os grupos de Cante reúnem até trinta cantadores que se dividem em três papéis: o ‘ponto’ inicia a moda, seguido pelo ‘alto’, que duplica a melodia uma terceira ou uma décima acima, muitas vezes adicionando ornamentos. Todo o grupo coral se junta em seguida, cantando os versos restantes em terceiras paralelas. O alto é a voz orientadora, que se ouve acima do grupo em toda a música”. (in Comissão Nacional da Unesco)

Deste excerto, facilmente se verifica que nele está perfeitamente plasmado o conceito que “antes” (da classificação), vulgarmente e sem reticências, se tinha daquilo que era considerado “cante”, “cante a vozes” ou “cante alentejano”.

Porém, hoje “tudo e nada” passou a ser cante alentejano desde que traga audiências às televisões e lucros aos espetáculos que despudoradamente se fazem nos pequenos e grandes palcos, no Alentejo ou fora dele, mandando para as urtigas a identidade, a essência e a verdade de uma tradição que sendo nossa, também, há 10 anos, passou a ser da humanidade. E contra isso, muitos alentejanos, renegando a memória, além de não se manifestarem desfavoravelmente, passaram a aceitar como seus os novos cantares de substituição, em detrimento do original reconhecido pela Unesco como património mundial e por quem já poucos, e cada vez menos, têm um sentimento de pertença.

E ainda só passaram 10 anos após a classificação. Que fará daqui a outros tantos?

Mas importa salientar que não estamos contra a existência dos ditos espetáculos em si mesmos. Os mesmos, e mais ainda, poderiam realizar-se sem qualquer reparo nosso desde que nos respetivos cartazes e anúncios se utilizasse qualquer outra designação imaginativa e não fosse usada, interesseira e abusivamente, a de “cante alentejano”.

Mas não era expectável uma realidade diferente, em consequência do vazio de medidas de salvaguarda para o cante e o desinteresse manifesto pela vida e valorização dos grupos corais que agora existem em menor número e ainda mais isolados, sem apoios estruturais nem quaisquer medidas especificas e globais, enfrentando, cada um por si, as vagas provocadas pelo impacto espetacular de uma classificação feita sem airbag.

Perante a passividade e alheamento do Ministério da Cultura por esta realidade, que foi também considerada obrigatoriamente como Património Nacional, resta-nos a esperança no empenho urgente do poder local nos concelhos onde “ainda” pontuam grupos corais, para que declarem o cante como um Património de Interesse Municipal e daí retirem as devidas consequências práticas.

Consideramos que já será demasiado tarde para se inverter a tendência atual, no entanto, era bom que despertássemos para a premência de se dar outro rumo à cultura popular, sob pena de a breve trecho termos malbaratado uma fatia significativa da nossa identidade, negligenciando, assim, um fator relevante da coesão social do nosso território.

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