Diário do Alentejo

Bilharetas
Opinião

Bilharetas

Vítor Encarnação

24 de novembro 2024 - 08:00

Já andaste fazendo bilharetas, dizia a minha avó enquanto abria portas e janelas para fazer sair o fumo negro que infestava a cozinha e se preparava para invadir os quartos de cama. Pedaços de papel esvoaçavam na corrente de ar e duas caixas de fósforos vazias jaziam a meus pés. Não posso virar costas que começas logo a fazer bilharetas, és tal qual o teu pai. O rodilho branco por cima do lenço preto de luto eterno que a minha avó usava para ir buscar água ao poço dava-lhe um ar de santa, mas eu com a cara e os braços tisnados mais parecia um belzebu pequenino, um Vulcano frustrado e triste que não percebia nada de fogo. Assim que a minha avó pôs o cântaro à cabeça e fechou a porta, preparei-me para lhe fazer uma surpresa e ao mesmo tempo levar a cabo o meu sonho desde o último inverno: acender o lume. Fui ao quintal e do manturo de lenha trouxe um madeiro, uns tanganhos, duas ou três enchapotas e uma braçada de estevas. Como via a minha avó fazer, arrimei o madeiro ao fundo do chupão, encostei os tanganhos ao madeiro, pus-lhe uma folha de papel de embrulho por baixo e acendi um fósforo, depois outro, ainda outro, vinte mais, a cabeça do fósforo a bater na caixa e a apagar-se. Finalmente uma chama pequenina a querer vingar mas a morrer quando tocava o osso das estevas. Queria ter o fogo pronto quando a minha avó chegasse, peguei em todas a folhas de papel que encontrei, juntei-as ao resto das estevas, por cima pus as enchapotas, mais três ou quatro tarolos, reguei tudo com um bocadinho de petróleo, se calhar foi muito, e acendi o derradeiro fósforo. O resto não ardeu porque não calhou.

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