Diário do Alentejo

Formigas de asa
Opinião

Formigas de asa

Vítor Encarnação, professor

19 de outubro 2024 - 08:00

Não sei quem comanda as formigas de asa, se o céu, se a chuva, se a minha vontade que elas cheguem.

Quando as nuvens são casas onde mora a água é tempo de olhar para o horizonte e esperar.

Outubro transforma a existência, transforma as árvores, a terra, a roupa, transforma o ar, a comida, a claridade, transforma o pensamento, as conversas, as certezas, mas nada é tão metafórico como a chegada desses seres alados.

Eles marcam a metamorfose do mundo, vêm de repente, existem de repente, partem de repente.

Há um antes e um depois psicológico, o extraordinário conforto da melancolia só se instala nas pessoas quando as formigas de asa aparecem. E para além desse aconchego que as pessoas sentem, eu sinto, a terra sabe que a chuva virá montada no dorso dos insetos, cada formiga traz a água que a planície exaurida lhe pediu, cada formiga desfaz-se em água, cada formiga é uma gota de água com asas.

No meu quintal poisaram muitas, podiam ter vindo todas viver essa vida tão curta no meu quintal, as que vieram contam-me silêncios do que é voar, não mato nenhuma, os meus passos são cuidadosos, algumas dão-me as asas antes de morrerem, é tão bonito quando nos oferecem asas de água, não há nada mais bonito do que oferecerem-nos asas de água quando entramos no outono da vida. As formigas de asa são palavras pretas que eu uso para escrever as folhas caídas e a terra lavrada, são palavras voadoras que precisam de poisar no chão para descansarem da lonjura do pensamento. Os pássaros esperam que eu entre em casa. A chuva encharcou a noite e as formigas de asa já partiram. Já pode mudar a hora. 

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