Ao longo de muitos anos já fiz várias escolhas ao guarda-fato e deitei fora calças rasgadas, camisas com colarinhos coçados, camisolas que deixaram de se dar com a barriga. Nada me apegava a estas peças de roupa, foram meras necessidades estéticas e funcionais, troquei-as por outras. Mas tenho um casaco de malha velho de que não me consigo desfazer. É de malha castanha corroída nos punhos, tem o fecho estragado e já há muito que perdeu a forma e a graça. É por estes dias, neste tempo que se acastanha e acinzenta e o frio começa a arrepiar a pele da noite, que eu o retiro do cabide e o visto assim que chego a casa. É a primeira coisa que faço quando a porta dos deveres e dos cansaços se fecha atrás de mim. Quando passo as mãos e os braços pelas mangas fico contente, descansado, cumprido, quando o visto visto-me de memória, visto-me de pessoas, de cheiros, de conversas, de silêncios. Este casaco atravessou nascimentos, atravessou mortes, atravessou dores de parecer estar tudo perdido, atravessou invernos de chuva e de pensamentos, atravessou noites de paixão e de esperança. O meu casaco velho é feito de saudades, do jornal defunto do meu pai, da bata finada da minha mãe, o meu casaco é feito do riso vivo dos amigos que me tentam afastar da cisma maior e da solidão, das músicas alumiadas pela chama do azinho, experimentem ouvir fados tristes alumiados pela chama do azinho, dos poemas aquecidos pelo fogo do sangue, experimentem ler poemas aquecidos pelo fogo do sangue. Quando chego a casa o casaco de malha velho abraça-me. Depois sentamo-nos os dois numa cadeira a pensar na vida.