Diário do Alentejo

Não havendo azar
Opinião

Não havendo azar

Vítor Encarnação

02 de agosto 2024 - 08:00

Não havendo azar todos os dias são bons, dizia o homem sentado na esplanada. Nunca fui de pedir muito, nem ao criador, nem aos meus pais, que mal se remediavam coitados, nem à minha patroa, nem aos moços, que têm os dois uma vida desafogada. Passei pela vida exigindo pouco e dando muito, quando eu era pequeno havia muita miséria mas jurei a mim mesmo que haveria de ter uma vida melhor do que a dos meus velhotes, cedo percebi o valor do trabalho, consegui juntar uns tostões para uma casita com um pedaço de quintal, está no meu nome, foi a primeira vez que alguém da família teve o nome num papel no registo da conservatória, ou eram casas arrendadas ou eram uns barracos emprestados enquanto duravam a ceifa ou a cortiça. Nunca fui de me queixar, guardava as coisas para mim e calava-me até vir novamente o alento. Também nunca fui de grandes emoções, às vezes vejo-os aí ora muito contentes, ora marafados, num instante mudam de feitio, isso não é bonito, isso apouca um homem, nunca gostei de fazer figuras, gosto mais de temperar a minha natureza. Há dias melhores que outros, a gente depende de muita coisa, quanto mais sonhos temos mais riscos corremos, não podemos querer dominar o que é mais forte do que nós, nunca fui de me entregar mas também nunca fiz frente ao destino. Passei fome, passei por grandes dores, passei por doenças ruins, a covid levou-me a patroa, mas cá ando, levanto-me de manhã e nunca penso em quanto tempo ainda vou por cá andar, muito não será, mas sei que um dia a pensar na morte é menos um dia a viver a vida. Não havendo azar todos os dias são bons. 

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