Diário do Alentejo

O menino  da bola
Opinião

O menino da bola

José Saúde, jornalista

27 de julho 2024 - 08:00

Numa frenética sensibilidade que nos arrasta para a saudade, recordo a algazarra dos rapazes de rua, revejo os despiques com uma bola em terrenos vadios, agora transformados em betão armado, lembro delirantes instantes e logo surgem à tona da memória as manhãs domingueiras que envolviam grandes jogatanas de futebol, sendo a baliza limitado por duas pedras, um “território” que muitos desprezavam, mas onde normalmente aparecia um rapaz com jeito para defender os remates mais certeiros dos intervenientes no prélio e lá se assumia como guarda-redes. Naquele tempo as bolas de borracha eram escassas. Às vezes lá aparecia o menino mimado, filho de gentes da alta sociedade, que, presunçosamente, metia inveja ao resto da moçada com uma bola amarela de marca Pirelle debaixo do braço. A redondinha era sinónimo de excêntricos prazeres. O menino que não jogava patavina, mas tinha que fazer parte infalível de uma das equipas, porque era o dono da bola, apercebia-se, entrementes, que a gentalha miúda não lhe passava o esférico, visto que a criança não piscava patavina daquilo, dado que a rapaziada, já amadurecida com as negligências da vida, levava o petiz a interromper o embate e lá marchava de rabo alçado rumo à sua mansão com a respetiva redondinha não fosse a “maralha” acabar com o brinquedo do garoto. A ralé, já conhecedora dessas tropelias, pouco se importunava com a leviana atitude do garoto, jogava mãos à bola de trapos e o jogo prosseguia. Aliás, as oportunidades em dar uns chutos numa esfera de borracha, naqueles tempos, eram basicamente raras. A bola de trapos, feita com uma meia roubada à mãe, era uma preciosidade que a criançada não dispensava. Evoco também as bexigas de porco recolhidas pela malta em épocas das matanças, principalmente, quando os moços eram oriundos de uma aldeia e assistiam ao vivo ao esquartejar das carcaças dos animais. Tudo isto é conversa do passado, assumo, mas um passado onde se cruzaram grandes craques que percorreram enormes percursos desportivos quer em termos nacionais, quer internacionais. Hoje, olhamos para a realidade presente e tudo desliza para o facilitismo. As crianças de agora têm todo o mecanismo competitivo facilitado, vestem equipamentos de marca, calçam botas distintas, o material das balizas é da melhor qualidade, as bolas excecionais, jogam em campos relvados, ou sintéticos, e têm um público a puxar pela equipa. Nós, antigamente, jogávamos em agrestes terreiros onde residiam as ervas daninhas e os vidros, com a roupa domingueira, alguns até descalços, não havia assistência aos dérbis e fugíamos das forças da ordem sempre que o polícia de giro detetasse as nossas presenças. Como foi bom, a conquista da liberdade que deu lugar à transformação desportiva, de entre muitas outras novidades agora constatadas. Ficam, porém, as memórias do menino da bola, que era sua e tinha mesmo de jogar!

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