O beberete estava perfeito, ao nível do que a moda define, quer na escolha dos produtos, quer na decoração. É assim que a modernidade exige, uma construção de cores e paladares, uma elaborada alternativa à simplicidade de um petisco. À revelia da tradição, alguns sabores que nunca se tinham cruzado foram obrigados a misturar-se e a coexistir nas pupilas e no palato. Flores onde dantes não existiam, doces onde não faziam sentido, queijos acompanhados de estranheza, dúvidas enroladas em presunto, linguiças polvilhadas de indeterminação. Os convivas aclamaram a beleza e a harmonia quase cénica da mesa, elogiaram o arrojo gastronómico. Os sabores saltavam dos olhos para a boca numa sinfonia gustativa de espanto. Mas no meio de tal arrebatamento, eis que um homem tira uma faquinha de dentro do bolso e abre-a. A lâmina, pequena e gasta por linguiças assadas e cabeças de borrego, era um intruso neste contexto vanguardista. O homem agarrou numa fatia de pão, limpou a estranheza de um queijo com um dedo, pôs o queijo em cima da fatia de pão e começou a cortar bocadinhos pequenos de um e de outro. E com a faquinha afiada, o homem começou a cortar a minha memória até ao osso da infância, um pão inteiro em cima da mesa debaixo de uma parreira, um queijo acabado de tirar do azeite, uma faquinha que me tinha saído num furo. A faquinha cortando pedaços de pão, a côdea a estalar na minha lembrança, o miolo untado de gordura caseira num fim de tarde de verão. Parei de comer as coisas elaboradas, não valia a pena. Fiquei saciado só de ver o homem a manusear a sua faquinha.