Diário do Alentejo

Nas margens do Enxoé
Opinião

Nas margens do Enxoé

Vítor Encarnação

15 de junho 2024 - 08:00

Conheci uma mulher que tinha a nascente da ribeira do Enxoé dentro do peito, no preciso sítio onde bate o coração. Ela era a fonte dessa água transtagana que lhe corria no pensamento, na boca, nos olhos, nas mãos.

Conheci uma mulher que só bebia desta água de palavras doces, era aqui na margem esquerda da pronúncia que ela matava a sede, era aqui que ela se lavava do enredo da vida e se perfumava de estevas e de silêncio.

A mulher deixava-se ir nessa corrente de horizontes, nesse caminho líquido, nesse leito de memórias que vão de montante a jusante da vida, nesse livro com sonhos na capa.

Conheci uma mulher que andava à procura de palavras em montes derrubados, em casas em ruínas, em pessoas ensimesmadas, em maneiras antigas, em amores impossíveis e não deixava morrer as palavras, semeava-as nas conversas e depois nós colhíamos os frutos.

Sabiam a essência, a sopas de tomate, a raízes, a açorda. Conheci uma mulher que gostava de plantar significados na terra e depois nós colhíamos os frutos. Sabiam à alegria da solidão, à satisfação do sossego.

Conheci uma mulher que sabia onde nasciam as rosas albardeiras e a saudade, era no preciso sítio onde bate o coração.

Abalava pela fresquinha, umas vezes ia a pé, outras vezes galgava léguas nas asas de uma cegonha. Para ela nada era longe, ela sabia que no Alentejo não há distâncias, apenas há lugares que vão abraçando outros lugares até chegarmos ao nosso destino. Conheci uma mulher que tinha uma alma feita de azinho e de vento. Essa mulher, deitada à sombra da lonjura, vive ainda nas águas da ribeira. 

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