Diário do Alentejo

Breve reflexão sobre o dia de reflexão
Opinião

Breve reflexão sobre o dia de reflexão

Rodrigo Ramos

09 de março 2024 - 12:00

Meu caro leitor, é provável que, ao passar os olhos por um calendário, venha a descobrir que hoje é sábado, dia 9 de março de 2024. Se for esse o caso, recomenda a Comissão Nacional de Eleições que leia este artigo com a lassidão de quem guarda em si o vagar dos dias; após, levante-se vagarosamente, estale os ossos dos dedos, abandone as mãos atrás das costas e assobie pelos cantos da casa; vá a uma janela bocejar os carros que passam, dê um salto à cozinha, colha uma uva, verifique se a porta do frigorífico se fecha sem folgas, ajeite uma cadeira mal arrumada, passe pelo espelho do corredor e componha o colarinho da camisa, pegue novamente no jornal, leia umas tantas linhas, deixe-o, levante-se uma vez mais e sacuda as calças, responda com desprendimento às perguntas dos restantes membros da família, regresse ao jornal, leia vagamente, esqueça-o em cima da mesa, verifique se aquela gaveta ainda range ao abrir, fale sozinho, roa o canto de uma unha, prometa a si próprio um novo salto à janela, aborreça-se, entregue-se mansamente ao tédio. Sobretudo, não fale, não leia, não respire política. Somente, entregue-se ao pensamento profundo.

Hoje é dia de reflexão.

Mais do que qualquer outro delito, importa sobremaneira não se deixar influenciar. Nem tão-pouco por si mesmo; porque de entre uma vasta lista de proibições consignadas para este dia, sanciona-se – não se admire! – a realização de pesquisas de opinião sobre as eleições, conforme decretado pela Lei Eleitoral para a Assembleia da República, lavrada há uns poucos anos, em 1976; quem teve o privilégio de viver na década de Setenta do século passado jura que foi ontem.

Poderia o legislador fazer cair a força da lei unicamente nos partidos políticos, os quais seriam forçados a interromper o ruído eleitoral na véspera das eleições. Caída a noite de sexta-feira, dispensado o dia com as doze badaladas, de pronto se embargavam as arruadas febris, cessavam os jantares de comício, se declinavam solicitações para entrevistas, se abdicava dos beijinhos, se recusava com delicadeza convites para dançar o vira, se enrolavam bandeiras, e eram postas em suspenso quaisquer outras iniciativas de campanha, tais como o arremesso de vasos e o derrame capilar de litros de tinta, muito celebrizados este ano.

Se tivesse parado aqui, não ia mal, o legislador. Todavia, achou-se necessário ir mais longe e cometer o contra-senso de, por um período de 24 horas, se limitar a liberdade de expressão e atirar com o país para uma simulação de regime autoritário que, com recurso a criativos exercícios de tortura, desaconselha conversas sobre política, como de resto se lembrarão vivamente os pais do tal legislador, quando não o próprio.

Não é suficiente, assim, reduzir a zero o volume dos partidos; é também necessário calar o cidadão. As razões são mais do que recomendáveis, eu bem as entendo. Se o meu caro leitor estiver na disposição, depois de regressar da digressão pela parte sul da casa, aqui me tem pronto a arriscar uma explicação, que não é senão esta: entendem o legislador e a CNE que o povo português não é suficientemente esclarecido para decidir, em consciência, o seu sentido de voto antes do sábado pré-eleitoral, e que só neste dia, mergulhado num profundo e forçado silêncio, se entrega por inteiro ao ofício de calcular os prós e os contras de cada partido, medir a dimensão de cada promessa lançada pelos candidatos ao ar, de ponderar as avaliações que os comentadores atribuíram a cada participante dos debates eleitorais; e deste modo se vê que, com tantos pregadores aos gritos em praça pública, não havia como reflectir, o que é o mesmo que dizer que não consegue um indivíduo recolher-se interiormente, tal qual um monge tibetano. É verdade que poderia não ser assim. É um facto que há uma ou duas democracias evoluídas que dispensam este dia. Olhe, assim arrumadinhas por ordem alfabética, temos a Alemanha, a Austrália, a Áustria, a Bélgica, o Canadá, a Dinamarca, os Estados Unidos da América, a Finlândia, a França, a Irlanda, a Itália, o Luxemburgo, a Noruega, os Países Baixos, o Reino Unido, a Suécia. Mas o português… o leitor sabe tão bem quanto eu, dispenso-me de dizer… ou direi?... enfim, o português, o português típico é fraco de pensamento, é, regra geral, um bonacheirão que sabe pouco mais que nada. Ninguém me tira da ideia que terá algo a ver com a fraca proteína de peixe que comemos e com os ares que vêm de Espanha. Bem, bem, não me refiro ao caro leitor, sejamos claros, que é um intelectual esclarecido, um senhor informado, conhecedor. Mas e os outros? E todos esses pobres coitados? Passe o meu bom senhor os olhos pelos seus vizinhos, pelos frequentadores do café da sua rua ou do supermercado da sua localidade. O que vê? Tão fraco saber, tão frágil conhecimento que para aí vai, os cérebros tão mirradinhos, o siso tão débil, as opiniões tão vazias, a vistas tão curtas, empurrando como mortos-vivos os carrinhos de compras... Se quer que lhe diga, a mim, provoca-me uma dor na alma, uma tristeza no coração, um abatimento… Em face de tão desafortunado panorama, pois não há-de a CNE, a boa CNE, a paternalista CNE de se ver constrangida a aplicar a lei, como forma de proteger os poucos neurónios que povoam a nossa sociedade? Este é um caso clássico de pagarem uns pelos outros, meu caro. Nós os dois sabemo-lo bem; connosco, escusaria a CNE de se incomodar… mas então e os outros? Já o leitor vê! Os outros… coitadinhos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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