Diário do Alentejo

Ribeirinha
Opinião

Ribeirinha

Vítor Encarnação

28 de janeiro 2024 - 08:00

Durante uma noite e um dia, o céu cinzento choveu como há muito não acontecia. De vez em quando, cada vez menos, as nuvens são mães de água. Deitei-me e chovia, dormi e chovia, acordei para ver se chovia e chovia, levantei-me e chovia. Fiquei tão contente que fui ver a chuva a cair das telhas, espreitei a inquietação da água nos algerozes, via-a correr rua abaixo, senti-a nas mãos, na cara, no coração. Fui para o trabalho de guarda-chuva aberto, há muito tempo que não ia assim tão animado. Há quem se farte de chuva rapidamente, querem-na, mas logo a seguir já não a querem, preferem o verão, que chatice a chuva, que chatice o inverno. Eu amo a chuva, passaria de bom grado um mês, dois meses seguidos com ela, haveria de arranjar forma de a amar até as barragens ficarem cheias. Depois de uma noite e um dia, o céu voltou a ficar azul e as mães da água morreram ainda tão novas. Do firmamento já não veio mais nada, o resto passou-se cá em baixo na terra. Uma ribeirinha formou-se no cimo de um cerro farto de água, os torrões e o xisto empurraram-na corgo abaixo e a água saltitava, ouvia-se correr, não nos esqueçamos que a água é filha das nuvens, uma filha pequenina que gosta de brincar. Dei a mão à água e fomos vereda abaixo, levámos nos nossos braços cortiça, folhas, bolotas, pedacinhos de azinho, restos de sobro, despenteámos malmequeres-do-campo, inundámos buracos, covas e tocas, descarnámos raízes de estevas. Quando dei por mim era já noite e estava com os pés dentro da barragem do Monte da Rocha.   

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