Diário do Alentejo

Memorando
Opinião

Memorando

Vítor Encarnação, professor

12 de janeiro 2024 - 08:00

Dentro do poço fundo da noite, entre as paredes altas dos lençóis, sobre uma almofada de pedra, no meio de sonhos desorganizados, a boca tenta respirar, o coração é um bicho aos coices e os olhos abrem-se de repente à procura de uma nesga de luz que nos diga que ainda não estamos mortos.

Não tenho dificuldade em adormecer, o corpo e o pensamento estão cansados do dia longo e difícil. As primeiras horas de sono são boas, a respiração serena, a cabeça quieta, os olhos fechados, o descanso a reparar a fragilidade e a impaciência

Dormir é o melhor remédio. Mas aquelas duas ou três horas admiráveis depressa acabam. Dentro do cérebro tenho um alarme que me acorda de repente, no meio do silêncio do quarto e do escuro parece que há gente a bater à porta e a fugir, a gritar a desoras, a correr dentro de casa e a partir tudo.

Às vezes mais me valia que assim fosse, mais me valia que bêbados me acordassem e cães não se calassem e gatas não parassem de miar com o cio.

A meio da noite, uma palavra solta aparece no meio da sonolência, vem e já não se vai embora, cresce de tamanho e de peso, é uma faca desgovernada a golpear o pensamento. Essa palavra traz outra e mais outra, traz frases inteiras que invadem a ideia e matam a razão.

A partir dessa morte já não há mais nada a fazer, a cabeça já não tem mais nada dentro de si a não ser inquietação, dúvidas, receios, coisas por fazer, prazos quase no fim, trabalho a mais, responsabilidades infinitas. Quanto mais eu tento calar-me, mais a consciência grita. 

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