A minha avó fez cento e dez anos e ainda está rija. Na semana passada, no dia oito de dezembro, a minha avó levantou-se cedo como sempre faz desde finais de mil novecentos e dezanove, inícios de mil novecentos e vinte. Com esta idade já não é fácil precisar o dia em que se começou a levantar de madrugada. Ela diz-me que a sua memória já não é a mesma, quem lhe dera ter só cem anos. Como se fazer cento e dez anos fosse uma coisa normal, levantou-se, vestiu a bata, calçou as pantufas, acendeu o fogo, fez uma chocolateira de café, deu comida ao cão e abriu a porta da rua. A porta da rua está sempre aberta, a casa dela é a casa dos outros, entra quem tem fome, entra quem tem lágrimas, entra quem tem falta. A minha avó não acordou ninguém, nem o meu bisavô, nem o meu avô, nem o meu pai, nem os meus tios. Eu ouvia-a mas não me levantei, fiquei a adivinhar-lhe os passos ligeiros. Matou duas galinhas, fez uma de cabidela com arroz e outra sem sangue com batatas, fez um bolo de mel e pôs a mesa para o almoço. Depois, aproveitando o sossego da casa, varreu o corredor, areou os cobres, fez a bainha a dois pares de calças, bebeu uma caneca de café e pensou na vida, só na vida, a minha avó nunca pensa na morte. Como sabemos, dia oito de dezembro é feriado e por isso as pessoas levantam-se mais tarde. Eram já dez horas quando eu me levantei, estranhei não ouvir nenhum rumor, fui de quarto em quarto e vi que a casa estava vazia. O tempo tinha-os levado a todos. Estão na festa de aniversário da minha avó.