Diário do Alentejo

Pérolas a porcos…
Opinião

Pérolas a porcos…

Mário Frota, presidente emérito da Associação Portuguesa de Direito ao Consumo e presidente do Instituto Luso-Brasileiro de Direito do Consumo

13 de maio 2023 - 13:00

Em tom meio grave, no termo de recente conferência, alguém se acerca, vituperando: “Já não há quem o queira ouvir, os consumidores estão cansados dessa lenga-lenga que para nada serve; mude de vida, que com isso não diverte nem converte ninguém… E é tudo em pura perda, são pérolas a porcos!”.

Por um instante, a reação exigível, que se pretenderia pronta, não surgiu. Um breve hiato para recuperar o fôlego e objetar: “Se cada um fizer o que lhe compete… Recorda-se da lenda do colibri, do beija-flor, que quando indagado das razões por que pretendia à viva força, com a gotícula de água que transportava no seu minúsculo bico, num vai-e-vem constante, apagar o gigantesco fogo que lavrara na floresta amazónica, se limitou a articular: ‘eu faço a minha parte’? Pois é essa a nossa postura!”.

Com efeito, nesta sociedade desestruturada (em que o Estado é o eterno omisso na formação e informação do consumidor), desenvolver uma qualquer atividade “estimulada por sentimentos que não por vencimentos”, em defesa de um ideal, pode, na realidade, confundir-se com algo de desprezível, de utópico, sem préstimo porque sem palco nem público…

São, com efeito, mais de 40 anos de atividade, na Academia como nos mais meios. Com os desconcertos suscetíveis de ocorrer.

Foi a 23 de abril de 1981 que o “Semanário Tempo”, de Nuno Rocha, acolheu um consultório jurídico nosso que levaria o “Direito a Todos”, como se pretendia. Com forte animadversão da Ordem dos Advogados para a qual a informação jurídica à população seria monopólio seu e, em consequência, nos instaurou um processo disciplinar. Contra o que se insurgiram, aliás, prestigiosos nomes como os de Eduardo Correia, Carlos Mota Pinto, Francisco Pereira Coelho, insignes mestres de Direito da Escola de Coimbra.

Não menos grave foi a perseguição movida em razão da ousadia da preparação, em agosto de 1986, do “I Congresso Internacional das Condições Gerais dos Contratos”, sob a égide da Comissão Europeia de Jacques Delors, que acolhera com louvor a iniciativa que a Coimbra traria, em 1988, 750 congressistas das sete partidas do globo…

Comemora-se, aliás, agora o 35.º aniversário desse memorável evento (de 18 a 21 de maio de 1988): o honroso patrocínio do Presidente da República e do reitor honorário da Universidade de Coimbra, António de Arruda Ferrer Correia, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian; e a feroz oposição da reitoria de Rui de Alarcão e dos conselhos diretivo e científico de Direito, capitaneados por Orlando de Carvalho e Rogério Soares.

Congresso que teve o suporte dos estudantes de Direito (notável o secretariado que se constituiu e pedia meças a qualquer empresa promotora de eventos) e da associação académica, sob a presidência da indefetível Ana Paula Barros.

Com personalidades como o saudoso conselheiro Neves Ribeiro, figura grada do Ministério da Justiça, e Manuel Lopes Porto, professor da Faculdade de Direito, como aliados, na comissão executiva, ousando desafiar os seus pares, perfilando-se ao lado de quem se dispusera a assumir a iniciativa, como autêntica pedrada no charco…

E o que de benéfico, em consequência, daí adveio: a pedra angular da AIDC, a sociedade científica internacional de Direito do Consumo e, na sua esteira, da antena nacional, a APDC, ora na iminência de completar 34 anos.

E tratava-se de um candente tema que mister seria “pôr em agenda”: o dos contratos de adesão, os das letras miudinhas que geravam e geram abundantes cláusulas abusivas…

E o afã com que a partir de então se adentrou a formação e a informação do consumidor, designadamente na televisão pública, pela mão de Coelho Ribeiro, antigo bastonário da Ordem dos Advogados e seu presidente do conselho de administração. E, mais tarde, numa centena de rádios e em centena e meia de jornais.

Se todo este pecúlio foi, ao longo de mais de quatro décadas, este permanente lançar de “pérolas a porcos”, é porque o País, quantas vezes padrasto para iniciativas de real valia, como as que viram a luz do dia, mas pródigo no esbanjamento dos dinheiros de todos, de todo se desmerece.

Mais de 40 anos de informação ao consumidor pode ser missão desgastante… mas algo terá ficado e não poderá ser havido, de nenhum modo, como se de “pérolas a porcos” se tratasse, na expressão chocarreira e aviltante de um interlocutor de ocasião!

Neste quase inglório fechar de página, que o julgue quem quiser, com mais isenção do que o real interlocutor que nos afrontou no termo de mais uma ação de formação/informação, no fecho de uma conferência… em Lisboa, a capital de um império de que nada resta, afinal, senão os deserdados da fortuna ante as nascentes e fáceis fortunas que vão medrando pelas ínvias veredas da corrupção…

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