Diário do Alentejo

A contagem decrescente do Estado Novo, de fevereiro a abril de 1974
Opinião

A contagem decrescente do Estado Novo, de fevereiro a abril de 1974

Mário Beja Santos , jurista e escritor

07 de maio 2023 - 11:00

Os meses finais do chamado regime de Marcello Caetano foram dominados por acontecimentos imprevistos, uns, outros, uma tentativa desesperada para comprar armas sofisticadas na quimera de que era possível manter uma guerra em três frentes, num quadro de solidão internacional, e num país sem dinheiro e com graves carências de oficiais. O ensaio Rumo à Revolução, de José Matos e Zélia Oliveira, Guerra e Paz Editores, 2023, alicerçado numa grande consulta de documentos e arquivos nacionais e estrangeiros, revela o que de fundamental aconteceu nos meses que precederam à queda da ditadura num só dia. Trata-se de uma narrativa que irá, seguramente, enfurecer aqueles que insistem que a guerra colonial tinha sustentabilidade, os recursos não faltavam, para eles a hecatombe foi a falta de vontade em combater, e por tal “crime” se desmoronou o Império. Num país em que ainda impera o culto do sebastianismo, tais nostálgicos não serão desarmados pela verdade dos factos, bem evidentes neste primoroso ensaio.

No essencial, vamos ver aqui abordados: o que de decisivo representou a publicação do livro de Spínola; a busca de armas, sobretudo, contando com a gratidão dos EUA pela cedência das Lajes após a Guerra dos Seis Dias, que trouxe consequências nefastas também para a economia portuguesa; as alterações que se tinham registado em Moçambique, o eterno problema da Guiné, a movimentação dos capitães; as consequências da demissão de Costa Gomes e de Spínola; e, como depois da abortada revolta nas Caldas, um golpe fulminante fez baquear um regime que durara décadas e que parecia não ter fim.

Estamos em 15 de fevereiro de 1974, Marcello Caetano preside, sem saber, à última reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional. O general Costa Gomes informa os presentes de que tinha sido assinado um contrato para a aquisição de uma bateria de mísseis antiaéreos e de que se procurava rapidamente adquirir armas anticarro para enfrentar as viaturas blindadas que se dizia estarem na posse do Paigc. O chefe do Governo referiu as grandes dificuldades em comprar armas nos mercados internacionais, era o que se estava a passar com os mísseis antiaéreos franceses “crotale”. Costa Gomes retoma a palavra para salientar a degradação da situação interna em Moçambique, nesta frente militar faltavam helicópteros e caças, o secretário de Estado da Aeronáutica referiu igualmente as dificuldades da sua aquisição e, mais adiante, chamou a atenção para a necessidade para prosseguir com o reequipamento da Força Aérea, pendiam graves ameaças na Guiné e Angola. Dias depois, Caetano irá ler o livro de Spínola, compreendeu que era agora inevitável o golpe de Estado. Os autores espraiam-se sobre o pensamento daquele que irá ser o presidente da Junta de Salvação Nacional, uma quase comédia de enganos de quem autorizou a publicação do livro. Caetano chama os dois generais enquanto os capitães conspiram, temos aqui uma súmula dos acontecimentos que vão espoletar o descontentamento corporativo com a legislação do ministro Sá Viana Rebelo numa tentativa de suprir a escassez de oficiais. Caetano está demissionário, Thomaz não aceita, começa um período da fuga para a frente, desde o seu discurso na Assembleia Nacional até à remodelação ministerial.

É bem interessante a exposição que os autores fazem sobre a esperança em que os EUA fornecessem armas capazes de contrabalançar equipamento superior de guerrilha. Kissinger, que viera a Lisboa agradecer em 17 de setembro de 1973 o auxílio prestado pelo Governo de Caetano, deixará claro de que o Congresso nunca permitiria a cedência às claras daquele armamento, dava como contrapartida o fornecimento e instalação de uma central nuclear, bolsas de estudo, fornecimento de cereais e colaboração técnica e financeira na prospeção de energia geotérmica nos Açores. E avivam-se as dificuldades em Moçambique e na Guiné, a África do Sul compromete-se a fazer um empréstimo de seis milhões de contos, o que daria para cobrir grande parte das necessidades portuguesas no campo do armamento, isto enquanto o Paigc fez a sua declaração unilateral de independência com o imediato reconhecimento de muitas dezenas de países.

É o momento azado de se fazer a descrição do nascimento do MFA, isto enquanto Caetano discursa na Assembleia Nacional, começaram as transferências compulsivas de militares, inequivocamente críticos do Governo, este é remodelado, introduzindo-se uma nova orgânica, Luz Cunha substitui Costa Gomes, segue-se a precipitação da chamada revolta das Caldas, o Governo parece aliviado e anuncia que há normalidade em todo o território. Escreveu-se no “Avante!” que “o Governo e o regime não cairão por si próprios, nem tão pouco por ação de umas dezenas de oficiais do exército, mesmo que corajosos e patriotas. A sublevação no 16 de março mostra-o mais uma vez”. Não deixa de ser curioso o que se passa na noite de 24 de abril de 1974 durante um jantar em Bona com elementos do Partido Social Democrata alemão, em que o ministro das Finanças disse a Mário Soares que a ditadura portuguesa estava para durar. Mário Soares não conseguiu convencer o seu interlocutor que o fim do regime português estava para breve.

O cônsul português em Milão recebe instruções para ir a Londres, num quadro de total secretismo para falar com o representante da guerrilha do Paigc, propunha-se denunciar uma possível independência para a colónia portuguesa, reunião inconclusiva, fica prevista uma outra para meses depois, dá-se o 25 de Abril. A 28 de março, Caetano profere a sua “conversa em família”, deixa claro que se mantém intransigente, a guerra prosseguirá.

A súmula dos acontecimentos do golpe de 25 de Abril, pelo seu rigor e frescura narrativa, revela-se um dos mais belos textos sobre a organização do golpe, num contexto que alguns ainda acreditavam ser de completa normalidade: 23 de abril reúne pela última vez o Conselho de Ministros, Caetano é a máscara do cansaço físico e psicológico, há jantares e encontros entre os homens do Estado na noite de 24, temos o desenrolar dessa noite, tudo culminará com a tomada da PIDE/DGS, no amanhecer de 26, isto enquanto Spínola dá a primeira conferência de imprensa na Pontinha: “Ao contrário do que seria de esperar, os arquivos da polícia política que continham milhões de fichas foram encontrados aparentemente intactos. Nas mesas de alguns agentes encontraram algumas revistas ‘Playboy’ e ‘Penthouse’. No gabinete de Silva Pais permaneciam três quadros fixos na parede com as imagens de Américo Thomaz, Marcello Caetano e Salazar. São dadas ordens para os retirar e Silva Pais prontifica-se para tal, mas o de Salazar era mais difícil por estar mais alto. Diz-se que alguém foi então buscar um escadote e o retrato de Salazar também foi removido. O fim do regime estava consumado”.

Uma narrativa de grande fôlego a não perder.

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