Diário do Alentejo

Reflexão sobre a provável não renovação do acordo dos cereais
Opinião

Reflexão sobre a provável não renovação do acordo dos cereais

Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais e Diplomacia na Universidade Portucalense

05 de maio 2023 - 13:30

O Acordo para a Exportação de Cereais e Produtos Alimentares pelos Portos Ucranianos, alcançado a 22 de julho de 2022 e renovado, por 120 dias, a 17 de novembro de 2022 e, por mais 60 dias, a 18 de março de 2023, corre o risco de implodir a 18 de maio de 2023... Moscovo parece ter perdido interesse na renovação do acordo dos cereais e isso é triplamente negativo.

Em primeiro lugar, a não renovação do acordo dos cereais representaria um revés diplomático para o secretariado-geral das Nações Unidas que, no que concerne à guerra russo-ucraniana, se tem mantido fora das grandes questões políticas e militares. O foco na dimensão humanitária depende, em grande medida, da implementação e alargamento do acordo dos cereais. A sua não renovação seria uma pesada derrota para António Guterres, cujo mandato, sabemos agora, é visto com suspeição por Washington...

Em segundo lugar, a não renovação do acordo dos cereais poderia gerar uma gravíssima crise alimentar, com impacto significativo no Corno de África, Norte de África e Médio Oriente, e impacto relevante nos mercados da Europa, África Subsaariana e Ásia Central. Uma subida do preço dos cereais, como trigo, milho, centeio e sementes de girassol, poderia agravar a crise inflacionária quando esta começa a dar sinais de algum controlo.

Em terceiro lugar, a não renovação do acordo dos cereais fecharia o único canal diplomático aberto entre os ministérios da defesa da Ucrânia, da Rússia e da Turquia. O que levaria a uma nova desconfiança sobre a relevância e capacidade transformativa dos mecanismos formais de diplomacia; o que levaria a um novo questionamento sobre a eficácia do direito internacional público que subsiste apenas e só pelo princípio da boa-fé e pela vontade expressa a direta dos estados.

A não renovação do acordo dos cereais não é, que fique claro, apenas uma simples teimosia de Moscovo. Também é teimosia do Kremlin, claro, mas não é apenas isso. Qualquer acordo, seja entre estados ou entre pessoas, implica duas partes que esperam tirar dividendos do mesmo. Qualquer acordo implica um jogo de cedências e compromissos, com vista a um ganho efetivo posterior. Ora, neste acordo, a Rússia contava conseguir escoar os seus fertilizantes, mas os embargos impostos pela União Europeia e pelo G-7 têm travado isso mesmo.

A União Europeia, que é criativa e dinâmica quando assim entende, já devia ter criado um mecanismo excecional que garantisse que o acordo dos cereais fosse plenamente implementado. Se estivesse em causa a garantia da segurança humana e alimentar das populações do Corno de África, Norte de África e Médio Oriente e não apenas uma falsa e pífia vitória diplomática por se “empatar” a Rússia, num acordo que vai gerando dividendos para Kiev, a renovação do acordo não estaria em causa.

Defender processos negociais equitativos e equilibrados tornou-se, no espaço mediático português, sinónimo de ser pró-A ou pró-B, mas este que vos escreve é apenas pró-equilíbrio e pró-justiça. Se o estado A e o estado B se comprometem com acordo C, o estado A terá que cumprir o acordo C na totalidade e não apenas a meia velocidade, sob pena de o estado B dizer que está em desvantagem e romper o acordo. A não renovação do acordo dos cereais arrastará a guerra russo-ucraniana para um inflamado combate de “achismos” e paixões inflamadas e não para a busca de soluções justas e equitativas que terminem com a bárbarie.

 

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