Diário do Alentejo

Já perdi a minha vida
Opinião

Já perdi a minha vida

Vítor Encarnação, professor

14 de abril 2023 - 12:30

Se não tivesse a cabeça ainda tão boa não me custava tanto. É pecado dizê-lo, mas preferia que a minha ideia já não fosse capaz de me lembrar do que fui. Pelo menos assim não tinha noção de onde estou e do que sou agora. Eu gostava tanto de quem eu era, fui uma mulher de armas, uma boa mãe de família, dizia o que tinha para dizer, joguei sempre as mãos ao trabalho, deitava-me sempre cansada, mas orgulhosa. Vocês que estão desse lado e que me amam não gostam de me ver assim, eu sei disso, é mais uma coisa que eu sei, eu percebo tudo e perceber tudo é que dói, perceber tudo é que me custa, esta cabeça percebe tudo, mas já não comanda nada. Vocês ainda não me perderam, mas eu já me perdi a mim.

Perdi logo metade quanto o vosso pai morreu e a parte que sobrou foi-se desgastando nesta imitação de vida que é estar aqui e ser qualquer coisa que eu não quero ser. Já nem sei se será melhor ter uma memória fraca num corpo forte ou uma memória forte num corpo fraco. Calhou-me esta última, é uma cruz que tenho de carregar. Vocês querem que eu coma, que me fortaleça, mas para quê? Só para ter força para continuar a carregar a cruz, um dia e outro, um dia e outro?  A vida prega-nos estas partidas, o tempo faz de nós o que quer, mas eu nunca tive grande feitio para aceitar o destino, para mim não havia destino, a vida era aquilo que eu decidia fazer com ela. E agora ela vinga-se e quer alimentar-se de mim e é para não lhe fazer a vontade que eu não como.

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