Diário do Alentejo

Entre Deus e as crianças
Opinião

Entre Deus e as crianças

Rodrigo Ramos, professor

26 de março 2023 - 14:00

Ministros de Deus que tenham encontrado, nas suas frequentes práticas sexuais com menores, súbitas incompatibilidades com a doutrina cristã podem estar seguros de ter no bispo de Beja um amigo. D. José João Marcos, que há uns meses se esquecera de preencher um questionário de satisfação acerca da vida sexual do seu rebanho diocesano, veio há umas semanas revolver o assunto, com a ponderação de quem estudou ao espelho um discurso meigo, para se dilatar em pedidos de misericórdia e prescrever uma justa absolvição.

Certo rabi, rompendo pelas aldeias e vilas da Galileia, com passos lentos e firmes, calçando umas sandálias poeirentas, era de pronto cercado por crianças e mais crianças, que corriam para lhe tocar no manto desgastado, segurar-lhe a mão e entrançar-lhe os dedinhos, medir-lhe a largura do peito com os seus pequeninos braços, calcular a profundidade dos seus olhos, pôr-se debaixo das suas mãos e rogar que orasse por elas. Que faziam, então, os discípulos do rabi, nesses instantes de fervor devoto? Repreendiam-nas e afastavam-nas com a rudeza despachada de quem tem um mundo de almas para salvar! E que dizia o rabi? Vamos, que dizia Ele? Uma máxima que ainda hoje perdura:

– Deixai as crianças e não as proíbas de vir a mim!

Por que motivo se há-de, agora, castigar os servos de Jesus, apenas porque abriram as portas da Igreja às crianças, ainda que para, numa febre impetuosa, logo as trancarem na sacristia? Sempre se evitava que andassem pelas ruas, largadas à sorte, na vadiagem ou à espera de serem atropeladas. Ao menos, acolhidas no interior das igrejas, olhadas do alto por uma corte de santos e anjos, achavam-se debaixo de protecção divina! Atrás de um sacrário que se degradava com os males que ali se praticavam e de um pobre Jesus que, sofrido e sangrado, crucificado, se desengonçava na vera cruz, tinham o consolo de alcançarem, como pagamento pelo seu sacrifício, conforme lhes prometera o homem da batina, representante de Deus na terra, acesso livre a um paraíso que tudo consola.

A sociedade civil, justiça lhe seja feita, vem exigir muito pouco: um pedido de desculpas, uma compensação financeira – que nunca aliviará as chagas, mas que talvez seja o bastante para pagar a um psicólogo ou a um psiquiatra que as modere um pouco – e que, comprovados efectivamente os actos hediondos, se afastem os párocos já esquecidos do catolicismo. D. José João Marcos acha um exagero! Contando que demonstrem uma sincera contrição, de alma vergada e de mãos ao céu, o mais católico seria despachá-los com cem pai-nossos, ave-marias e glórias até ao fim da vida e que fossem com Deus.

É certo que, defronte das enormes labaredas que as suas palavras atearam, D. José João Marcos veio trocar o perdoado pelo condenado, o que é o mesmo que dizer que se pôs João a corrigir José. O bispo D. Marcos, que parece conter em si mais multidões do que Fernando Pessoa, apontou o indicador para a porta da igreja e esclareceu: párocos que tenham cometido abusos sexuais de menores não têm lugar no sacerdócio. É louvável, a rectificação; se não por outros méritos, ao menos porque parece indicar que D. José João Marcos reconhece que, mesmo sem a apurada disciplina do Santo Ofício, a Igreja tem culpados a haver. A questão, agora, é saber se, para além destes, há também vítimas. Para o sabermos com franqueza, é primeiro preciso definir o que é isso de vítimas. O senhor bispo de Beja não sabe! Na sua opinião, “vítimas” é uma palavra que se usa quando não é próprio dizer em público “os fedelhos que, por tão pouco, causaram uma zaragalhada de alto lá com ela”. Quem nos garante que o senhor padre, afeito a ser olhado com reverência, o único indivíduo habilitado por ordenação sacerdotal a celebrar baptizados, matrimónios, a doutrinar, a comungar, a absolver, a ser ele o pai em lugar do Pai, a pôr e a dispor da fé dos fiéis, ele só, um filósofo do sofrimento cristão, não é também uma vítima das suas funções? Certamente que o é! Daí que há quem considere apropriado pôr termo ao celibato. Em boa verdade, o ideal seria abdicarem os eclesiásticos de serem homens, mas como parece que deixar de ser um homem, esse composto de ossos, articulações, nervos, veias, sangue, carne e paixões, é uma prerrogativa que só cabe a Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, mais não resta aos clérigos do que se conservarem homens e abdicarem antes do celibato. Aí temos a solução para estes inconvenientes que andam há séculos a assolar a Igreja Católica. Atirando com os eclesiásticos para o interior de uns lençóis de luxúria, dar-se-ão por terminadas as agressões a crianças. Porque, enfim, a mente de um clérigo, se andar satisfeita com a Maria Prudêncio, beata, proprietária de um pequeno ateliê de costura no largo, não adere ao interesse juvenil. Talvez, ainda assim, venham os sacerdotes a perder o Paraíso, mas feitas as contas, o privilégio de descobrir a roupa interior da D. Prudêncio é bem-aventurança que baste para renunciar ao Reino Eterno de Deus.

Demais a mais, lembra-nos o D. José João Marcos, perdoar é católico! E o sofrimento também, ajudo-o eu, que para isso estou! E explico: as cruzadas, que provocaram sofrimentos atrozes em nome de Deus, eram católicas; a Santa Inquisição, que deu em acender fogueiras em nome da Santa Sé, era católica! Os cilícios são católicos, as autoflagelações chibateadas com recurso a chicotes eclesiásticos são católicas, a circum-navegação da capelinha das aparições, em joelhos, é católica! Caros leitores, o que é o catolicismo, senão uma teologia de sofrimento e de dor?! Ora, se o sofrimento é católico, resulta que podemos honestamente rotular de “vítimas” quem sofre?! Para o gentil D. José Marcos, a dor de um menor que sofreu traumas profundos e irreparáveis não é, por si só, o suficiente para o reputarmos de “vítima”! Porque o bom bispo vive fiado de que, onde os religiosos puseram a chaga, se há-de achar também a mezinha. Não é por acaso que a sociedade se habituou a chamar estes homens de curas!

 De modo que as vítimas, para o bispo de Beja, são entidades tão insondáveis, tão indefinidas e misteriosas quanto o próprio Deus. Talvez isto explique a razão por que D. José Marcos, em vez de servir Deus, opte por servir todos os padres que, esquecidos da presença divina, fizeram das capelas as suas casas e das sacristias os seus quartos. Mas não se inquiete, vossa excelência reverendíssima, tende resiliência. Veja: o melhor que poderia suceder a estes sacerdotes era precisamente serem acusados pelo Ministério Público. Nada os lançará mais certeiramente para o coração do Deus Pai! Leia São Mateus, leia. Leia quando o Santo Apóstolo diz que “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu”!

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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