Diário do Alentejo

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Vítor Encarnação, professor

17 de março 2023 - 16:00

Lembro-me bem, a minha mãe ficou tão contente por eu ter dado vinte passos sem cair, fui da horta à soleira da porta, o chão desnivelado, as minhas pernas de menina à procura de equilíbrio por entre veredas e alegretes, no dia seguinte dei trinta passos e dali a um mês já corria tudo, mal sabia eu que ia passar a vida toda a andar de um lado para o outro, primeiro em cima de umas pernas de moça desembaraçada, carregando feixes de lenha, carregando água, fazendo mandados, mondando e ceifando, uma légua do monte até à seara, duas léguas para cá, tal era o cansaço, depois em cima de umas pernas de mulher feita, carregando farinha, engordando porcos, limpando casas, a minha e as dos outros, uma légua até lá chegar, duas para voltar, tal era estafa, carregando filhos na barriga, era só ter um, já o homem me estava a fazer outro, lembro-me bem de penar noite e dia, para trás e para a frente, para cima e para baixo, mas cair é que eu não caía, agora, há poucos dias, a minha filha, a que me vem ver, ficou tão contente por eu ter dado vinte passos sem cair, fui da cozinha à sala, o chão nivelado, as minhas pernas de velha à procura de equilíbrio por entre artroses e tristezas, carregando idade, carregando tempo, carregando saudade, talvez amanhã só dê quinze passos, cinco metros para lá, dez metros para voltar, tal é a fraqueza, talvez os pés se arrastem, talvez os joelhos se dobrem, mas cair é que eu não caio, não vim de tão longe para agora cair.

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