Diário do Alentejo

Escuro
Opinião

Escuro

Vítor Encarnação, professor

28 de fevereiro 2023 - 14:00

Nunca percebi como se aprende o medo. Não sei como se enraíza o temor no pensamento, desconheço se haverá uma predisposição, uma herança genética que nos preenche de receios e pavores. Quando eu era pequeno, o escuro e a solidão eram o palco dos meus medos. Assim que a claridade morria e a noite se impunha, assim que acabasse de jantar e terminasse os deveres, eu sabia que o pesadelo ia começar. Na minha cama, enterrado em mantas e angústia, socorria-me dos sons que vinham da cozinha. A loiça a ser lavada, os garfos a baterem na pia de pedra, os copos a serem arrumados, um prato a bater noutro, o meu avô a tossir.

Os passos da minha avó no corredor, o rodar da chave da porta da rua, a porta do quarto dos meus avós a fechar-se e a matar a luz do candeeiro a petróleo. O meu quarto sem janela, eu entre quatro paredes a apertarem-me, o meu quarto pequeno, afogado em escuridão e silêncio, os meus olhos à procura de uma réstia de luz, a minha boca à procura de ar, o meu coração à procura de sangue.

E depois, apenas momentos depois, qualquer coisa a estalar, qualquer coisa a poisar nas telhas, qualquer coisa a entrar, qualquer coisa debaixo da cama, qualquer coisa a deslizar sobre as mantas, qualquer coisa a arrepiar a pele, qualquer coisa a crescer no escuro, vozes, gritos, um bebé a chorar, um pequeno caixão branco, a minha vizinha velha morta na cama, um esqueleto, um funeral, uma bruxa, uma alma penada, a costureirinha.  

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