Zé Brás era conhecido em toda a vila. No mais das vezes, levantava paredes de casas novas que nunca poderia comprar, mas o patrão punha-o a fazer todo o tipo de trabalhos: caiava os muros dos jardins senhoriais, reparava cercas, substituía telhas vãs, e o que mais houvesse. Nunca se empenhara nas tabernas e era raro darem com ele em casa, sentado à lareira, a soprar as brasas, entediado. As poucas horas em que não se enterrava em cascalho ou alombava com pedras de adobe, passava-as a fazer outros serviços, consoante a época, a mando de outros patrões. Tanto oferecia os braços para a cortiça, como espetava a faca no pescoço do porco; ora se entregava à apanha da azeitona, ora atestava canastras com cachos de uvas. Quando passava no largo da igreja, as velhas botas cambadas, a pele curtida pelo sol, de boina na cabeça, toda a vila dizia, num orgulho comovido:
– Isto como o Zé Brás, não há outro.
Morava no fim da rua da escola, numa casa de barra azul, com uma cozinha e um quarto, que trazia arrendada a uns senhores de Lisboa, que havia anos que não desciam ao Alentejo. Com o tempo, esqueceram-se da casa. Foi talvez para aquecer o frio das quatro paredes nuas que Zé Brás se decidiu a ir falar com o pai da Maria da Piedade para acertar o casamento entre ambos.
O Zé Brás nunca andara na escola, mas conhecia os números das notas que o empreiteiro lhe punha nas mãos, no final do mês e tinha uma vasta experiência a somar despesas. Não era, portanto, de espantar que quando a barriga de Maria da Piedade começou a crescer, o Zé Brás se tivesse posto a fazer contas. A criança sempre havia de ter precisão de um agasalho, de mais umas migalhas de pão e de uma quartinha de leite de ovelha, todas as manhãs. Nessa altura, quem lhe jogou a mão foi o presidente da junta, que o chamou certo dia e lhe perguntou o que achava de abrir covas no cemitério da vila, aos domingos. Maria da Piedade arranjou um trabalho a passar a ferro os lençóis e os vestidos das senhoras da vila e sacudir-lhes, à janela, os tapetes enlameados e poeirentos. De uma cesta de verga, Zé Brás inventou um berço e a criança deu em crescer.
O bom servente estava decidido a mandar o filho aprender as letras e as contas de dividir. E quando acabasse a quarta classe, sempre teria uns braços bons para o ajudar com os baldes de massa. Quando a professora o chamou à escola e lhe disse, muito arrebatada, que o seu Jacinto tinha talento para os livros e era uma pena se deixasse de estudar, Zé Brás resignou-se e permitiu que o filho ingressasse no liceu. A Jacinto agradou continuar os estudos; lia uma e outra vez os manuais que a escola lhe emprestara, já muito puídos, de páginas rasgadas, demasiado rabiscados. Deliciava-se a ler a História de Portugal, de Oliveira Martins, os contos de Eça de Queirós e os poemas de Guerra Junqueiro. Encantavam-no as experiências que o professor de Ciências ensinava; nunca fizera gazeta e atirava-se sempre aos seus deveres, com a língua presa entre os dentes, numa compenetração dedicada. Foi assim que quando terminou o liceu, com louvor dos professores, Zé Brás nem hesitou. Nem que se matasse a trabalhar, havia de mandar o rapaz para Coimbra, para se fazer doutor. Maria da Piedade passou a costurar à noite, à luz mortiça de um candeeiro a petróleo.
A Jacinto, já homem feito, quebrava-se-lhe o coração por ver os pais tão gastos, tão derrotados pelos dias e doía-lhe saber que vendiam a saúde a troco de uma promessa de vida melhor para si. Nas visitas à vila, a mesma súplica:
– Deixe-me ajudá-lo, meu pai. Esquecemos isto de Coimbra.
– Queres ajudar-me? Pois não te atrevas a largar os livros!
Quando se tornou bacharel, Jacinto arranjou emprego num escritório de advogados e não descansou enquanto não conseguiu um empréstimo no banco para comprar uma casa um pouco melhor para os seus velhos. Anos depois, conheceu uma mulher de Santo Aleixo, loira, olhos verdes, vestido ligeiro, os braços nus e convenceu-se de que as mulheres de Santo Aleixo eram as mais belas do mundo. Casou-se, comprou casa em Lisboa. Para que não se perca a conta, vão duas casas. Quando os sogros morreram, a esposa, filha única, herdou a casa dos pais. Num par de linhas, três casas! Jacinto, homem das leis, informado, não se surpreendeu quando, a partir de 2017, foi chamado a pagar o Imposto Mortágua. A casa dos pais pouco ou nada valia, mas a sua, em Lisboa, padecia de um metro quadrado ridiculamente inflacionado. Quando herdou a casa dos sogros, as três casas bateram de chapa nos 500 mil euros e a singela bloquista apressou-se a exigir, a ordenar, a impor, a cobrar uma taxa adicional ao “imposto mais estúpido do mundo”, nas palavras de António Guterres, a respeito do então SISA, actual IMI. A deputada Mariana Mortágua adoraria devotamente os pais de Jacinto, mas ao filho, quere-o esmagado! É que a Dra. trotskista tem uma predilecção apaixonada pela pobreza e, na mesma medida, um horror assustado a quem dela ouse sair.
Mais do que isso, não suporta a propriedade privada, nem acha que as pessoas tenham direito de usufruto dos bens que adquiriram com o mérito do seu trabalho. Perante a circunstância de haver poucas casas para arrendar, o Bloco de Esquerda deliberou obrigar os proprietários a arrendar casas vazias, por um valor máximo, que será aquele que o partido bem entender, conforme a signatária deste terrorismo de Estado explicou ao jornal “ECO”. E se os proprietários acharem pouco rentável colocar as casas no mercado e optarem, em alternativa, por as manter para si, o Estado assumirá a incumbência de forçar o arrendamento. E diz isto, a dra. Mariana, ipsis verbis:
– Alguém que, por mera retaliação, mantém um imóvel fora de mercado, numa altura em que há uma crise de habitação, tem de ser obrigado a pôr o seu imóvel a arrendar – e, para o caso não termos achado esta loucura suficientemente aterradora, conclui: – Se um proprietário pode manter casas fechadas só para manter uma guerrilha política, é porque não precisa do dinheiro das rendas!
Felizes Zé Brás e Maria da Piedade! Graças à normalização da loucura estadista da extrema-esquerda, o mundo é e sempre será dos pobres…
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia