Diário do Alentejo

Doçaria de Natal: Receitas Políticas
Opinião

Doçaria de Natal: Receitas Políticas

Rodrigo Ramos, professor

23 de dezembro 2022 - 14:00

Caro leitor, atrás de si, cintilante e bem composta, branca, grisalha, verde ou negra, com uma ramagem impenetrável que nasce de um tronco de plástico e termina em esferas e pendentes vermelhos, dourados ou brancos, em chocolates e em luzinhas que saltitam a compasso, altiva, com a sua estrela reluzente no topo, planta-se seguramente uma árvore de natal. Se a fé ou o hábito lhe empurrar a família, aos domingos de manhã, para uma igreja, há-de se encontrar, debaixo da árvore ou numa mesinha de apoio, um presépio, acamado com gentileza e bonomia sobre a fartura de um musgo seco. Ao centro, no interior de uma cabana em ruínas, a virgem olha o menino deitado na manjedoura; S. José dormita, encostado ao seu cajado, enquanto ovelhas de Belém, em tudo similares às nossas ainda que mais silenciosas, pastoreiam pelos arrabaldes, onde apesar do clima seco e inóspito, nunca faltam ervas verdes, uma língua de água feita em papel prata e uma velha azenha. Se há rendimentos, amontoam-se, debaixo da árvore e ao redor, umas poucas caixas embrulhadas, maiores ou menores, consoante a propensão familiar para o endividamento. Caro leitor, o que é que essas caixas guardam para si? Saúde, um emprego ou, se o tem, um aumento salarial, um carro novo, umas férias de Verão num resort & spa na América Central? Talvez não seja de pedir tanto; talvez uma casa pequena, uma família afectuosa à volta de uma mesa de consoada onde não falte o essencial, um amor dedicado, a traquinice de uma criança irrequieta ou quiçá um novo herdeiro, senhor de tudo o que lhe pertence, a chorar por mama no conforto de uma alcofa, seja o quanto baste para o embalar numa paz idílica.

Lamentavelmente, nem toda a gente nasceu com predisposição para a paz. Veja-se o caso do sr. Putin, do Aiatola Ali Khamenei, dos israelitas e dos palestinianos, de alguns jogadores da equipa de futebol do Canelas e dos ministros do PS. Lembra-se o leitor de quando, em tempos, Augusto Santos Silva, fanfarrão, pedia que o largassem, que queria malhar na direita?! O que nós dois rimos! José Sócrates, como decerto também se recorda, de espírito mais duelista, cultivou o recomendável hábito de se atirar tanto a procuradores como a jornalistas de investigação e, mais recentemente, o nosso primeiro-ministro, não obstante encher a capa da revista Visão com uma suculenta coxa que para além de não ter sido encomendada, parece vir já fria, entendeu dar uma entrevista de maldizer, rija, decidida, enérgica. Num país de gente resignada e indolente, é reconfortante sabermo-nos guiados por um primeiro-ministro herdeiro do êxtase rezingão socialista, que a custo refreia uma vontade firme de gladiar. Na entrevista, António Costa trazia guinchos e queques. Vinha, portanto, armado!

Tão longa é a lista de problemas sociais, que o povo, perante a promessa de sangue derramado, acorreu às páginas, com calafrios na espinha, levados pela ânsia de saber a que desafio político o primeiro- ministro declararia guerra em primeiro lugar: aos impostos excessivos, aos baixos salários, à precariedade social, ao desemprego, à emigração – em particular a emigração jovem e qualificada –, ao caos do serviço nacional de saúde, ao sistema educativo, às sucessivas greves da função pública, à corrupção endémica, ao elevado preço da habitação, às taxas de juro galopantes, à Covid-19, à inflação, às cheias, à economia do bloco de Leste que, no índice do PIB per capita nos ultrapassa violentamente e sem um água-vai? Um momento para recuperar o fôlego – pois talvez se surpreenda, caro leitor, mas não: a primeira bofetada foi consagrada à Iniciativa Liberal, a quem o nosso ministro-mor apelidou, com um sorriso bonacheirão, de queques guinchantes. Que excelente lição de astúcia política! Chiadeiras e guinchos à parte, anote-se como o dr. Costa transformou, com notável inteligência, o debate político numa questão de pastelaria!

Não publicou o El País, no passado dia 16, que “Portugal sufre la segunda sangría demográfica más grave desde 1864”? Com vossa licença, qualquer criança do primeiro ciclo, depois de aprender estatística, se acha qualificada para analisar números do Eurostat! Mas o que dizem os espanhóis acerca dos nossos Pastéis de Nata? São ou não de gemer por mais? Deselegantemente, intrigam os nuestros hermanos que “la emigración de adultos jóvenes entre 2011 y 2021 acelera el envejecimiento de la población, el tercero más elevado del mundo después de Japón e Italia”, mas é vê-los vacilar se os ameaçamos com coscorões, azevias e filhoses!

Dr. António Costa, permita-me um aplauso. Será sempre muito respeitado um homem que não se coíba de recorrer à doçaria natalícia para emudecer a oposição! E quanto a si, meu caro leitor, duas palavras: se possível, na noite de natal, recolha-se em casa e deixe os políticos da mão! O mal deles é terem mais olhos do que barriga. Se o puder evitar, não se aventure lá fora. É que caem tempestades como só o Inverno as sabe mandar e se o leitor for como a maioria de nós, não há-de ter um bote para circular pelas ruas inundadas! Mas, sabe, um português em Dezembro, se tem armada uma árvore de natal, por perto uma família digna de presépio, se está bem sortido de lenha, tem um lombo de bacalhau no congelador e um bolo-rei na mesa, é capaz de enfrentar qualquer temporal! Para aqueles a quem as circunstâncias da vida não permitem tamanha riqueza, lembrem-se de que se puseram aldrabas nas portas foi para que nelas batêssemos, em caso de necessidade. E, em Portugal, pouco importa o quantose tem na mesa, há sempre lugar para mais um. Votos de um Feliz Natal.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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