Diário do Alentejo

Avental
Opinião

Avental

Vítor Encarnação, professor

02 de dezembro 2022 - 12:15

Tento lembrar-me da minha avó sem avental mas não consigo. Às vezes, quando os anos que passaram toldam a minha memória do seu rosto, quando o tempo que fugiu matou para sempre a minha recordação da sua voz, só me resta o avental. A minha avó Antónia é um coração a bater no bolso do avental cinzento, para além do coração também há rebuçados e fósforos, uma cabeça de alho e um ramo de salsa acabado de apanhar. O avental não me deixa que ela morra para sempre, há pais e avós que morrem para sempre, os filhos e os netos deixam-nos morrer para sempre, batem-lhes com a porta da memória na cara, nos ossos, na cinza, deixam apodrecer as lembranças e depois deitam-nas fora, deita-se fora uma vida inteira, o amor, o sangue, o nome, como quem deita fora restos de comida que já ninguém aproveita.

Eu quero aproveitar os restos da memória da minha avó, quero mantê-la viva para sempre, é um pormenor, um capricho do tempo, ela ter morrido. No dia em que ela morreu, eu ainda não sabia muito bem o que era a morte. A avó Antónia foi a minha primeira morte, foi ela a minha primeira lição sobre o que é perdermos quem nos faz falta, sobre o que significa perdermos quem amamos. Foi a primeira a faltar à mesa no Natal, foi o meu primeiro funeral, a primeira sepultura onde enterraram um rosto que eu tinha beijado. A minha avó continua de avental posto. A memória não lho quer tirar porque eu não quero que a minha avó morra para sempre.

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