Diário do Alentejo

O Novo Desconhecido
Opinião

O Novo Desconhecido

Rodrigo Ramos, professor

13 de novembro 2022 - 14:00

Há dias, Jerónimo de Sousa sentiu o ímpeto de voltar à obscuridade e à modéstia da vida privada e comunicou, para grande pasmo geral, que se retirava do palco partidário do PCP, já de si bastante oculto, justamente porque a sede do Comité Central não se oferece a escrutínios jornalísticos nem a outros disparates democráticos. Leva consigo o velhinho Renault Clio, a simpatia generosa que nos fazia esquecer que naquele coração de avô trauteava o compasso da Internacional, uma reforma que não será nenhuma fortuna e afasta-se leve, descontados os pecados da ideologia.

Anunciada a partida, logo se adivinharam congressos, debates, discussões, opiniões divididas, acusações febris, ofensas pessoais, conjurações intriguistas de listas para as eleições internas. A excitação é desculpável. De facto, este sufrágio político é próprio da vida partidária, em sociedades maduras. Foi, de resto, à boleia desta natureza mutável que o comentador da SIC António Costa puxou o tapete a António José Seguro, que ainda hoje se questiona pesaroso qual era a pressa. Assistimos a uma comédia similar no PSD, no CDS e, por estes dias, acompanhamos com curiosidade a inquietação da Iniciativa Liberal, uma adolescente a quem o corpo cresceu demasiado depressa, sobressaltada com mais dúvidas do que certezas. O PCP, porém, vem de outros tempos, traz um saber de experiência feito e acha em todos estes empecilhos democráticos um cabo dos trabalhos.

Cansado de maçadas, Jerónimo de Sousa abdicou. Antes de desfazer o gabinete, porém, receoso de que outro qualquer lhe pilhasse as ovelhas, correu a pôr em seu lugar um novo Grande Líder. E quem é, pois, o feliz eleito? Um desfile de personalidades depressa preenche a lista: João Ferreira? João Oliveira? António Filipe? Miguel Tiago? Bernardino Soares? A que herói afamado da frente parlamentar, a que alto dirigente do Partido, a que eterno presidente da governação autárquica coube a honra e o privilégio de capitanear o mar vermelho?

Pois anotem bem o nome, que eu mesmo precisei de o procurar duas vezes, enquanto redigia este artigo: o ilustre desconhecido Paulo Raimundo. Foi o próprio Jerónimo de Sousa quem admitiu que até no Comité Central reinou a estupefacção. No entanto, o líder decidira, estava decidido. Tréguas à democracia!

Já Shakespeare inquiria, no saudoso período isabelino, o que havia num nome e sabendo que uma imagem vale por mil nomes, o PCP disponibilizou uma fotografia do seu novo Secretário-Geral na página oficial, para que não venham depois os militantes do Partido pôr na boca de Pedro o que afinal dissera Paulo.

Na biografia que acompanha a fotografia, podemos ler que Paulo Raimundo tem 46 anos, é casado e tem três filhos. O pormenor parece pouco relevante, mas é de singular importância: sendo casado e pai de três filhos, não é estranho a altercações e contendas internas; com 46 anos, é o primeiro Secretário-Geral a cometer a deselegância de ter nascido depois do 25 de Abril. Após um parágrafo de dolente romantismo, em que Paulo fora testemunha de uma via crucis de injustiças sociais, pode ler-se que, em tempos, “trabalhou em carpintaria, foi padeiro”. Dificilmente, lhe poderemos pedir mundo, mas convenhamos que é o suficiente para cumprir a ortodoxia do Partido. Continuando a descer pela ária angustiada, pode ler-se que “aderiu à Juventude Comunista Portuguesa em 1991. Em 1995 passou ao quadro de funcionários da JCP”.

Contas feitas, ingressou na JCP com 15 anos, mais mês, menos mês, e ainda mal saído dos 17 anos era já um valoroso guerreiro dos quadros da JCP (entenda-se, com remuneração, horário integral e contrato sem termo). Com um trabalho remunerado das 9h às 17h, acrescido de noitadas a discutir Marx, a desfiar pelas madrugadas adentro as atrocidades do capitalismo ou a colar cartazes (por certo será mais avisado dizermos que chefiava jovens púberes que colavam cartazes, talvez conduzindo a carrinha aos soluços, de poste em poste), não lhe descortinamos os vagares para os nobres ofícios da maçonaria ou da padaria. A passagem por ambos terá sido curta, mas foi a quanto baste para puxar lustro ao currículo. Eis como se produz o mito do operário!

De entre as duas, resulta mais valiosa para o dirigismo comunista a arte da padaria, mesmo se efémera. É através dela que se alimenta um Partido que anda desde Lenine a mastigar o pão que o diabo amassou.

A verdade é que o PCP protesta contra a estagnação do elevador social e tem nas suas fileiras um funcionário que, em menos de um ai, trocou a bata operária pela camisa desabotoada no colarinho. Há homens que, num par de horas, sabem para o que nascem. Cristiano Ronaldo não terá precisado de mais de dois ou três pontapés numa bola de futebol para saber quem era, não venhamos nós agora rejeitar que Paulo Raimundo, por ter certa vez passado uma lixa numa mobília que se restaurava num estaleiro de maçonaria, seja hábil no manuseamento do tico-tico! E se um dia se achar no parlamento e os seus camaradas se levantarem em alvoraçado protesto, é com propriedade que o Presidente da Assembleia da República o intimará:

- Senhor deputado, faça o favor de aplainar a sua bancada!

Eu próprio, numa manhã soalheira de Novembro em que me achava particularmente enfadado, distraí-me a apanhar umas quantas azeitonas, num pequeno olival da família. Duas ou três ramas que fossem bastaram para que ainda hoje me sinta um orgulhoso agricultor.

Para compor a lenda do homem comunista, faltaria apenas a Paulo Raimundo ter sido também cavador de enxada, mas o Partido, muito experimentado nas lides populares, declinou, não lhe viessem depois, à caça de polémicas, perguntar a quem pertencia afinal a enxada.

Em Março, no comício dos 101 anos do Partido, achou um microfone sem dono, uma foice embandeirada ao alto, o Campo Pequeno vestido de vermelho, e atirou duas lengalengas costumeiras, com que ficou apresentado. No PCP, a vida segue como dantes, o Comité Central respira de alívio: o Secretário abdicou, longa vida ao Secretário!

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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