Diário do Alentejo

O meu hipermercado por uma lata de sardinhas
Opinião

O meu hipermercado por uma lata de sardinhas

Rodrigo Ramos, professor

28 de outubro 2022 - 15:00

Que não há trabalho sem trabalhos, sempre foi de conhecimento geral. A novidade está agora nos trabalhos a que a escassez do salário obriga. Em termos práticos, a rotina familiar pouco se alterou. Se antes de sair de casa, uma esposa devota lembrava o marido que passasse pelo supermercado e trouxesse uma lata de sardinhas, agora, antes de sair de casa, lembra o marido que passe pelo supermercado e… traga uma lata de sardinhas. A diferença, de tão subtil, mal se nota, mas explica-se em duas linhas: há coisa de um ano, para trazer a conserva, o homem resignava-se a ir buscar à carteira o pouco que tinha e que mal lhe chegava. Agora, este filho da geração de 74 atira-se para uma luta silenciosa contra um alarme bem cingido.

Custa a crer que, há coisa de dois mil anos, tenha bastado a um simpático rabi da Galileia subir a uma barca atracada no porto do lago Genesaré, de goelas abertas depois de uma noite de labor inútil, e insistir que se fizesse de novo ao largo, perante o pasmo dos pescadores, e ordenar-lhes: “lançai as vossas redes” para que uma tal quantidade de peixes e mais peixes saltasse para a rede como quem salta para a salvação. Por aquele barco farto, não foi preciso largar uma única moeda e agora, dois mil anos volvidos, não há como vencer um mísero alarme que, tal qual aranha, estende as patas à volta de uma lata de atum.

Posto isto, cautela: se me vêm com hosanas aos ladrões de latas de conserva, com as já sabidas circunstâncias de a inflação ter ultrapassado os 9%, o custo de vida ter subtraído um dos catorze salários anuais, a prestação do crédito à habitação galgar juros sobre juros e cerca de quatro milhões de pessoas viverem com o pescoço ligeiramente acima do limiar da pobreza, bem podem pregar a outra porta, que aqui mora um surdo!

Então o criminoso é que há-de ser a vítima?! E o desgraçado do director, que vê as suas latinhas, tão airosas, tão bem-postas, todas empilhadinhas umas sobre as outras, num metalizado comovente, voarem das prateleiras para os bolsos dos casacos ou das pochetes, sem ao menos passarem pela casa de partida nem pagarem o preço da etiqueta, esse não sofre? Não seria uma ignomínia pôr-se um retalhista a fazer vista grossa a um par de latas de conserva que vai alimentar uma família pobre? Só porque ao ladrão se lhe torceu o estômago quando ouviu os filhos chorarem com fome, e cada gemido era como se nas suas entranhas se enroscasse um lacrau? Não me venham com sermões, que nos conselhos executivos dos maiores hipermercados do país também há muita miséria calada. Senão vejamos: de quanto julgam os leitores que se soma o recibo de vencimento de um director executivo de uma dessas empresas de retalho mais afamadas? Pela minha honra que não terá mais de quatro ou cinco mil euros para sobreviver. Por mês!

Quanto ganha o pobre desgraçado ladrão de latas, perguntam-me, como se tudo fosse um argumentar e contra-argumentar. Ora eu, que não sou de fugir a um despique, não vos deixo sem resposta: a fazer fé nas estatísticas, à volta de 705€. Se vos parece menos que o primeiro, desenganam-se. Não é. Porque o homem do povo há-de viver com a sua família num bairro social e não pagará mais de dois dígitos de renda, por um T1 desamparado. Quanto paga o infeliz director executivo do hipermercado pelo seu condomínio privado com piscina? E pelo colégio das crianças, mais a catrefada de actividades extracurriculares? E os seguros de saúde para toda a família? As contas são boas de fazer, porque vos adivinho eu a hesitar? É que quem não tem o infortúnio de conduzir um Mercedes nunca saberá a quanto ascende o valor da manutenção, na rede de oficinas autorizadas!

Já o filho do Zé Inácio das Latas, com vossa licença, frequenta o ensino gratuito; na mochila puída, leva livros oferecidos pelo Governo e um computador quase novo, que se liga em menos de um ai. Além de que, se for insuportável o aperto da fome, pode sempre aproveitar os furos das disciplinas sem professor e correr ao hipermercado mais próximo, para oferecer os seus préstimos para umas tarefas e, deste modo honesto, ganhar uns trocados. Vai daí, até lhe nasce um saber para a vida, sempre se prepara para o ofício da reposição de produtos ou das limpezas.

Depois há outra: todos os pobres são compensados com um qualquer mecanismo de fascínio que os aproxima. Salvo raras excepções (no mais das vezes, negócios de saias), são amigos, têm uma gentileza rude uns para com os outros. Em se pondo o sol, juntam-se ao redor de uma mesa e um leva o vinho, o outro um presunto, um chega-lhe com o pão, outro a linguiça e aqui temos uma refeição pronta. Onde se acha, num ninho de directores executivos, quem estenda uma mão amiga? Meus caros, no ramo empresarial odeia-se, rosna-se, luta-se, fecham-se punhos, apertam-se gravatas. Um Whisky de Malte escocês que se beba, só no silêncio do gabinete, às escondidas. E assim, metidos no seu fato Armani ou Hugo Boss, a mão direita agitando o copo com gelo, a esquerda desconsolada no bolso, passa pela cabeça do director um lamento que vocês nem imaginam: “que diabo não me ter a minha mãe feito pobre!” Dos sofredores é o reino dos céus.

Agora, escutem cá outra coisa: alguns destes novos-pobres que Portugal tem concebido ultimamente provêm da agricultura. Certo? Não há dúvida de que o rendimento que retiram das terras e da pecuária é pouco mais que nada, mas não é também verdade que todos os dias respiram os ares saudáveis do campo, suspiram com os nasceres do sol, alegram-se com o balir das cabritinhas a sair de madrugada do curral, passam os dias distraídos em cima de um tractor, com uma palha na boca? E do outro lado, que contentamentos podem esperar estes directores executivos dos grandes hipermercados, fechados num esplêndido escritório todo o dia, fazendo telefonemas, regateando com produtores locais o pouco que lhes compram e deitando contas às exorbitâncias que pagam para pôr alarmes no seu ganha-peixe? É que isto de ser director executivo de uma empresa de retalho não é como os párocos de aldeia, que levam a vidinha a cantar! Os malogrados dos directores têm mais do que a família para alimentar; aos fins de semana, recai sobre eles a incumbência de fazer churrascos, dar jantares, aparecer nas revistas ou aceitar convites para presenças em eventos sociais ou corporativos. Já os ladrões de enlatados, precisamente porque lhes calhou em sorte não terem comida em casa, não recebem convites nem têm o desprazer de entreter convidados! À noitinha, adormecem num silêncio de mausoléu. E querem-me fazer crer que estes é que são as vítimas da inflação?! Com franqueza, é preciso ter lata!

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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