Diário do Alentejo

Ausência
Opinião

Ausência

Vítor Encarnação, professor

04 de outubro 2022 - 12:00

Se a tua memória morre, seria mais fácil que a minha morresse também. Acompanhar-te nesse esquecimento, nessa ausência que se instala em ti como uma névoa e te apaga o sol do teu sorriso para sempre, tornaria a vida menos ingrata. Não é justo que de nós os dois só eu me lembre de termos sido plenamente dois, eu em ti, tu em mim. Éramos tão novos quando descobrimos que tínhamos sido feitos um para o outro, não, não é falta de requinte dizer isto, basta ir lá atrás no tempo e revolver a nossa pele, a carne, os braços, as bocas, o fundo dos olhos, as palavras que dissemos, os silêncios que percorremos com as mãos.

Não é justo ter vantagem sobre ti, não é correto eu lembrar-me do que fomos e tu não, não vale a pena recordar-me do tempo todo que vivemos um para o outro e tu não. Se for para perdermos tudo, então que o percamos em conjunto, deixa-me fazer de conta - tão difícil é fazer de conta - que também eu já olvidei o que fomos, o caminho que percorremos, como aqui chegámos.

Deixa-me juntar-me à tua perda da noção do tempo, à tua perda de autonomia, à irreversibilidade do cansaço do teu cérebro, deixa-me ficar junto a ti, deixa-me abraçar a tua ausência, estás e não estás, és e não és, deixa-me chorar, tu não sabes porque é que eu choro, tu já nem sabes o que é chorar, deixa-me contar-te coisas dos nossos filhos e dos nossos netos, deixa-me imaginar que nada disto te aconteceu.

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