Diário do Alentejo

Ex-libris
Opinião

Ex-libris

José Saúde, jornalista

31 de agosto 2022 - 17:00

É impregnado num silêncio assumido como sombrio, que me reencontro com uma melodia que me transporta a uma viagem no tempo, onde revejo uma estrofe que me leva à condição de um mero viajante, na área desportiva, num distrito denominado como Baixo Alentejo: “Lá no cimo do montado/No ponto mais elevado/Havia um enorme sobreiro/De todos era a cobiça/A dar bolota e cortiça/No montado era o primeiro”; cantava o saudoso João Braza, compatriota alentejano, de Évora, no célebre “Fado do Sobreiro”, tema este que me fez reviver aquele imponente chaparro localizado junto à linha lateral do campo defutebol José Agostinho Matos, em Cabeça Gorda. Altaneiro, e possuidor de uma exorbitante superioridade, assumiu-se inexoravelmente como um ex-líbris de um povoado que fez sempre dele uma insofismável bandeira.

Os seus tons, outrora verdejantes, deram lugar a um pálido e mortiço castanho. Sofreu de uma inevitável praga que no declinar de vida vitimizou parte de um montado onde as suas histórias cruzam gerações. Na cédula de existência da azinheira, reside o facto de ter sido símbolo de gentes que não perdiam pitada dos jogos do Clube Recreativo e Desportivo da Cabeça Gorda. Altivo e pujante, conheceu tardes de glória desportiva, sendo dantes um ilustre anfitrião de desafios em que a equipa atuou no campeonato da antiga FNAT, agora Inatel, e mais tarde na primorosa ascensão no prodígio futebolístico, atuando na III Divisão Nacional. Hoje, já nada resta da sua agradável sombra, ficaram, sim, restos de uma esplêndida imaginação que resvala somente para o campo da saudade.

Sobram, aliás, resquícios da sua presença, cuja ramagem entrava para o interior do retângulo de jogo. Fica, pois, a remanescente a pergunta: Qual soberano oásis onde se calejavam dois dedos de conversa! Recordo os tempos em que o saudoso Zé Carlos Dias tratava diálogos fantásticos com o seu apaziguado chaparro. Numa narrativa acessível e cordial, planeava pretensões para o emblema do seu coração e que recaíam, por norma, no fortalecimento do seu “Ferróbico”, visto que muitos dos seus sonhos se converteriam, mais tarde, em prósperas realidades. Lembro as noites de verão no campo da bola da aldeia, onde a população se juntava para apreciar diversos acontecimentos (bailes e marchas populares) e se refrescavam por debaixo do seu ancestral ex-líbris. A aragem, oriunda de um horizonte onde a sua auréola premeditava sinais de intensa canícula, aliviava rostos que evidenciavam uma autêntica alegria, após mais um dia de trabalho.

Mas, o desgastado chaparro, já seco e sem rama, morreu de pé como as árvores. A sua excecional linhagem catapultou a sua aldeia para os píncaros da fama. O velho e centenário azinheiro, nunca adormecido, lá foi paulatinamente deixando histórias e motivando as mais díspares reações daqueles que visitavam o local para assistir a mais uma jogatana de futebol.

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