Diário do Alentejo

Meio rosto
Opinião

Meio rosto

Vítor Encarnação, professor

12 de maio 2022 - 12:15

Só a conhecia de máscara posta, há já dois anos que aquele meio rosto perfeito lhe apareceu na vida, era uma manhã de março quando ela entrou no autocarro pela primeira vez, os olhos a lerem um livro, doze livros já ela leu desde aí, tantos quantos os títulos que ele apontou no caderno de Biologia. Ela marcava a página, guardava o livro na mala, compunha a máscara e saía quatro paragens antes dele, ele continuava a viagem, tirava da mala o livro que ela ia lendo e lia o que ela tinha lido. E lendo as mesmas palavras que aqueles olhos leram, linha a linha, página a página, ele tentava perceber quem estava atrás da máscara. Árdua e terna tarefa tinha ele pela frente, a de ser uma espécie de espião livresco, um decifrador de códigos literários que lhe permitisse definir a intimidade daquela rapariga que lia livros no autocarro. Uma mulher construída com as palavras de José Saramago, de Afonso Cruz, de José Luís Peixoto, só pode ser uma mulher perfeita por dentro. Essa parte estava concluída, aquele meio rosto perfeito é certamente belo por dentro. Mas faltava o fundamental, faltava agora destapar o nariz, os lábios, a boca, o sorriso, ver a cara toda.  Esperou ansiosamente pela reunião do Conselho de Ministros, no dia seguinte já podia ver o rosto todo perfeito. O mistério iria finalmente ser desvendado. Enganou-se, pois manteve-se a obrigatoriedade do uso de máscara nos transportes coletivos de passageiros.

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