Diário do Alentejo

A gestão da ausência
Opinião

A gestão da ausência

Vítor Encarnação, professor

24 de março 2022 - 11:25

É no silêncio que a dor dói mais, principalmente quando o barulho da chave a rodar na fechadura é a última coisa que ouço antes de entrar. Não posso aceitar que quando eu entro tu não estejas na cozinha a fazer a sopa e a ralares-te comigo. Estavas invariavelmente na cozinha, dizias que na cozinha o teu cansaço amainava e a vida te dava tréguas. E que por entre tachos, receitas e temperos, vivias mais. Talvez por isso o lume do fogão estivesse sempre brando, talvez por isso jantássemos sempre tão tarde, noite fora a mastigarmos a ternura de nos termos aos dois.

 Na sala, a televisão estava sempre ligada, era para te fazer companhia, para haver barulho porque no silêncio a dor dói mais, dizias tu. E eu não te percebia, porque eu não tinha silêncio nem dor dentro de mim e entrava feliz em casa por saber que tu estavas à minha espera e me amavas muito. Esperava que lavasses a loiça, arrumasses o avental e viesses sentar-te a meu lado no sofá. E eu, que era sempre pequenino dentro dos teus olhos, deitava a minha cabeça no teu colo para me cantares canções de embalar. E tu, com a tua voz única de seres minha mãe, matavas os meus fantasmas, expulsavas os meus medos, abrias-me portas e apontavas-me outro amanhã. E eu adormecia dentro dos teus dedos de luz acesa na minha vida. Agora fumo outro cigarro e não tenho fome e não acendo a televisão porque já nada me faz companhia.

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