Diário do Alentejo

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Vítor Encarnação, professor

28 de fevereiro 2022 - 10:20

A mãe queria deixar tudo pronto antes de vir o carteiro, devia ser por aqueles dias que chegava outra carta, para a minha querida mãe, dizia-lhe a filha da vizinha, e a filha da vizinha desdobrava o papel e lia, espero que esta carta vos encontre bem, já havia dois anos que o filho andava lá pelo ultramar a matar terroristas, era assim que diziam na televisão, ainda faltava outro ano, tantos terroristas havia de haver, o coração vai abrindo buracos quando os filhos morrem, mas se este tivesse morrido já lho teriam dito, uma vizinha soube três dias depois, estava ao postigo à espera do carteiro, quando viu a guarda e o padre caiu de joelhos e começou a morrer, com o seu filho alguma outra coisa seria, talvez uma perda de memória, ou os confins da selva onde não há carteiros, devia ser isso, quando se ama, tudo serve para tentar enganar o medo e o desânimo, quando se quer muito, tudo serve para tentar enganar o tempo e a saudade. Uma madrugada, ainda antes de a aldeia toda acordar, bateram à porta, quem seria a umas horas destas, quem bateria assim tão cedo, o carteiro não podia ser, talvez a guarda e o padre, quase caiu de joelhos, quase começou a morrer, a mãe a tentar pôr-se de pé em cima do pavor, a conseguir a muito custo, a acordar o silêncio do corredor, a abrir a porta e a cair de joelhos, mas não começou a morrer, nenhuma mãe morre quando um filho lhe aparece à porta.

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