Diário do Alentejo

A mãe
Opinião

A mãe

Vítor Encarnação, professor

18 de fevereiro 2022 - 12:30

A mãe dormia menos, a mãe não descansava tanto, tinha de descobrir horas e cabeça que chegassem para meter lá dentro os filhos, a dor da morte que já lhe roubara um, foi a tísica que o levou, enterrado fazia um mês, um corpo tão pequeno deitado num caixão tão grande, a fome que passaram, o já ser noite e não saber deles, o marido fraco de espírito, as bebedeiras, as ceroulas até aos joelhos, a combinação puxada para cima, quase todas as noites, mãos grossas nas ancas, rudes, a boca de aguardente a arfar, a mãe chorando lágrimas, pela bruteza a meio de si, pela dor a meio do peito, os dois mais pequenos deitados ali ao lado, o marido a arfar, os filhos a dormir, dois anjinhos, a comida, arranjar comida que desse para todos era um milagre, a roupa, remendar roupa para tapar os buracos da vergonha, cavar um rego de terra para tirar de lá umas couves, umas batatas, criar três ou quatro galinhas, uma para a Páscoa, outra para o Natal, as idas ao poço, o rodilho de pano na cabeça, a quarta de barro à cabeça, os dois mais pequenos pela mão, dois anjos magros a acompanhar esta santa, as idas à ribeira, lavar mantas, desencardir lençóis, pedir fiado na mercearia, ir pagar logo que pudesse, a necessidade não tem de tornar as pessoas menos dignas, penar com o marido que vivia dentro do vinho, mas desta vida nem uma queixa, nem um ai. A mãe conseguia inventar dias e coragem para lá do raciocínio do tempo e da alma.

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