Diário do Alentejo

O soldado desaparecido
Opinião

O soldado desaparecido

José Filipe Murteira, professor

07 de fevereiro 2022 - 15:00

Há precisamente cento e três anos, no dia 21 de janeiro de 1919, “…embarcou para Portugal a bordo do transporte Gil Eannes (…) o 1º cabo nº 278, José Felipe, solteiro, natural de Sta Victoria, concelho e distrito de Beja (…) da 11ª Companhia, 3º Batalhão do Regimento de Infantaria nº 17…” (1). Este é um excerto do Boletim Individual deste soldado, que integrou o 1º Corpo Expedicionário Português, força militar que participou na 1ª Guerra Mundial.

Quando regressou ao seu país, tinha 25 anos: “ Aos vinte dias do mez de Setembro do anno de mil oitocentos noventa e três n’esta Igreja parochial de Santa Vitória concelho e diocese de Beja baptisei solemnemente um individuo do sexo masculino, a quem dei o nome de Jozé e que nasceu nesta aldeia e freguesia às seis horas da tarde do dia vinte sete do mez de Março do anno corrente filho (…) de Fellipe Joze trabalhador (…) e de Victoria Leonor (…) nesta freguesia de Santa Vitória aonde (…) são moradores e parochianos (…) O Parocho Francisco Aurelio Diaz” (2).

Tal como milhares de jovens, com pouco mais de 20 anos saíra da sua aldeia para, como diz a canção (da altura da outra guerra mundial, a segunda) “… atravessar oceanos e escalar montanhas…” (3), enfrentando o calor de África, primeiro, e o frio da Flandres e da Alemanha, depois, para participar numa guerra que muito pouco ou nada lhe diria. Depois dessa primeira missão, em Moçambique (que, tal como Angola era cobiçada pelo Império Alemão, descontente com a partilha de África feita na Conferência de Berlim), regressa a Portugal, em 1917. Em 21 de agosto deste ano embarca de novo, desta vez na direção da frente ocidental da guerra (França e Bélgica).

Rezam as crónicas que essa viagem, entre Lisboa e Brest, cidade portuária francesa, foi um verdadeiro martírio para os cerca de 60 mil soldados portugueses, amontoados em navios com más condições higiénico-sanitárias, propícias aos surtos de doenças como a sarna. Ali chegados, ainda tinham de percorrer algumas centenas de quilómetros até à frente de combate, por comboio e depois a pé. Depois de receber “…instrução de baioneta e granadeiros em outubro de 1917…”, irá participar na Batalha de La Lys, um verdadeiro desastre para as tropas portuguesas, com mais de mil mortos e vários milhares de feridos, prisioneiros e desaparecidos.

José Felipe é um destes desaparecidos.

Depois do Armistício, em 11 de novembro desse ano, é encontrado pelas tropas aliadas no campo de prisioneiros de Merseburg, na Alemanha, tendo-se apresentado, no dia 20 desse mês, ao seu batalhão. De acordo com o livro de registo de prisioneiros desse campo, terá sido aprisionado no dia 9 de abril, data de derrota em La Lys, junto à localidade francesa de Vieille-Chapelle, perto da fronteira com a Bélgica. Juntamente com ele, muitos outros soldados portugueses, das mais variadas zonas, como Braga, Santarém, Porto ou Faro (4). Mas, certamente que a melhor companhia nesses dias de sofrimento terá sido o seu conterrâneo João Coroa, nascido no mesmo ano que ele, no Monte da Vinha, perto da estação ferroviária de Santa Vitória-Ervidel.

Dois meses depois da libertação regressam ao seu país, tendo chegado a Lisboa no dia 23 de janeiro de 1919, quinta-feira.

Três dias depois, o domingo é um típico dia de inverno, frio, com uma chuva miudinha mas persistente. A noite chega cedo, trazendo a escuridão às ruas da sua aldeia (a eletricidade só chegará mais de quarenta anos depois). Numa dessas ruas (das Eiras), o contraste não podia ser maior: numa casa ao fundo, a alegria e a festa de um casamento, um pouco mais acima a tristeza de um casal, de luto pelo seu filho, dado como morto na guerra (como aconteceu com muitos outros soldados), sentados à lareira que lhes aquecia apenas o corpo, já que a alma estava fria como a noite.

Subitamente, alguém bate à porta. Não esperam ninguém, daí a surpresa. O pai vai ver quem é. À sua frente, um farrapo humano: cabelo e barba compridos, piolhos, sujidade, roupas andrajosas, um saco com alguns pertences. Depois de uma viagem de várias horas de comboio, ainda fizera a pé os três quilómetros entre a estação e a aldeia. Não é reconhecido de imediato e tem ele próprio que dizer que é o filho desaparecido na guerra. Ao choque inicial, sucede-se a alegria, as lágrimas, o anunciar a boa nova inesperada aos vizinhos e à família. As roupas e o calçado irão dar origem a uma fogueira no quintal; um banho quente ainda nessa noite, o barbeiro no dia seguinte, dão ao jovem José uma nova vida. Durante a semana seguinte, todos os dias a mãe Victoria Leonor prepara refeições com as galinhas que tem no seu quintal, para que o seu filho recupere o peso e a vitalidade perdidos nos últimos anos.

Alguns anos depois do regresso, José Felipe casa com Vitória dos Santos Romão, com quem viria a ter cinco filhos e duas filhas. Um desses filhos, Filipe, irá ser o pai do autor desta crónica.

José Felipe, este “soldado desaparecido” viria a falecer no dia 13 de janeiro de 1956, aos 63 anos.

 

 

1) https://ahm-exercito.defesa.gov.pt/

2) https://digitarq.adbja.arquivos.pt/

3) “Till Then”, The Mills Brothers, 1944

4) https://grandeguerre.icrc.org/

1) Registo Paroquial de Santa Vitória

 

(Artigo publicado na edição nº 2074 a 21 de janeiro 2022)

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