Agora que passou mais um ano é novamente réu de si. Tudo o que previu e não concretizou lateja dentro da sua cabeça. São ideias aos gritos, pensamentos que se atropelam, remorsos que fazem doer a ilusão, vergonhas que se escondem atrás da memória, sonhos que apodrecem dentro da caixa craniana. Desejos ocos. Determinações imóveis. Adiou tudo todos os dias, enganou todas as tardes, desaproveitou todas as noites. Sabe que foi mais um ano oco, apenas mais um calendário que o tempo comeu. Fora essa a função do seu tempo. Comer folhas de papel devagarinho, rasgando dias, chorando meses, enterrando outro ano. Sepultando-o dentro de si, ao lado dos outros anos que jazem no cemitério debaixo do cabelo. Está pois no sítio de onde não saiu. Trezentos e sessenta graus de nada. Todas as luas escusadas, todos os sóis em vão. Não teve braços, nem mãos, nem boca, nem palavras para fazer aquilo que os braços e as mãos e a boca e as palavras fazem. Abraços, carícias, beijos, luz. Ficou a olhar, a sentir vagamente que se fizesse um esforço conseguiria mover um braço e depois outro, e à frente deles iriam as mãos colhendo ternura. Ficou a ver, a pensar que se fosse além dessa dor estática poderia abrir a boca e respirar o oxigénio contido nas palavras de amor. Mas não. Ficou emocionalmente tetraplégico. Como se ele próprio fosse uma estátua erguida em louvor da sua melancolia de carne e osso.