Diário do Alentejo

Letras miudinhas
Opinião

Letras miudinhas "nem vai nem racha"

Mário Frota | presidente da Associação Portuguesa de Direito ao Consumo

19 de janeiro 2022 - 16:50

Já passaram mais de 135 dias após o termo do prazo imposto pelo Parlamento para se regulamentar a lei, mas o  Governo ainda não o fez (ou seja, ainda não há diploma regulamentar) numa atitude sumamente censurável.

A regulamentação do Serviço de Injunção em Matéria de Arrendamento, criado para acudir a situações de assédio aos locatários (como a que redundou na morte de  uma  senhora  num prédio no Porto mandado incendiar pelo proprietário) durou quase dois anos após os prazos legalmente estabelecidos.

A regulamentação do Livro de Obra Eletrónico que englobaria os termos da “ficha da habitação” (resolução do Conselho de Ministros de 5 de junho de 2017) jamais se concretizou: ficou no tinteiro…

A lei que acabou com a proibição da publicidade nas autoestradas previa uma portaria regulamentar para definir termos e condições dos escaparates (os cultores mais impenitentes da língua portuguesa chamam-lhes ‘outdoors’) nesses espaços públicos: que saibamos, nunca saiu; mas no dia seguinte ao da publicação da lei a publicidade reapareceu nas autoestradas como natural “desimportamento” das autoridades…

A nova Lei das Garantias dos Bens de Consumo saiu – face às normas cogentes da União Europeia – com um atraso de três meses e 18 dias (o que não permite de todo uma adequada divulgação até à data do início de vigência, o dia 1.º de janeiro de 2022). A anterior Lei saiu com um atraso de um ano, três meses e oito dias em relação à data da entrada em vigor imposta pela União Europeia (1.º de janeiro de 2002); e os lesados nem se manifestaram por efetivo desconhecimento do facto. Quem adquiriu nesse  lapso  de  tempo  coisas  móveis  duráveis (como um automóvel, por exemplo) ficou com  uma  garantia  de  seis  meses  que  não de dois anos (que era a garantia da Diretiva europeia)… E ninguém se voltou contra o Estado a pedir uma indemnização pela lesão de interesses e direitos!

A chamada lei das “cláusulas miudinhas” vai pelo mesmo caminho, com os “rodriguinhos” do Governo para se furtar a um juízo de censura dos cidadãos, mal despertos, anestesiados!

O Governo tem ministérios que nunca mais acabam. Nunca ninguém ouve falar da maior  parte deles, nem de ministros, nem de secretários de Estado. Mas os títulos de vencimentos queimam os cofres do Estado… Produtividade? Que  cada  um  invente  o  que  melhor lhe  aprouver!  Vantagens para o bem comum? Não há régua de cálculo que o registe!

Se um cidadão, por mais obediente que se mostre, falha um dia que seja as obrigações que sobre ele pesam, aí vem coima, aí vem relaxe, lá vêm emolumentos, mais despesas administrativas… e a “fatura” engrossa desmesuradamente!

Se o Estado (que vive “supra legem”, acima da lei) falha um ano, dois anos, o cumprimento de uma lei… nada sucede, que o Estado só é de Direito de “fachada”! Até onde irá a contagem dos dias perdidos para se ter, entre nós, o diploma regulamentar da lei das “letras miudinhas”? Haja um mínimo de decoro! Não lesem despudoradamente a cidadania!

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