Diário do Alentejo

O rei vai nu
Opinião

O rei vai nu

Pedro Ramires, gestor

21 de dezembro 2021 - 16:10

A política é um jogo de espelhos. Alguns dirão que a vida também o é. Mas na política as repercussões deste jogo são perigosas porque, frequentemente, a imagem refletida tende para a opacidade. Diria, convenientemente para a opacidade. Este jogo de espelhos retira autenticidade e transparência aos agentes e aos processos. A análise do político deve, sempre, procurar expor aquilo que não é autêntico, por imperativo categórico moral na defesa dos princípios elementares da democracia. Deve-se, então, falar em falta de autenticidade do poder (seja ele o poder de um estado ou numa outra qualquer relação de poder) quando há uma inexistência de correspondência entre a configuração normativa (a lei, os estatutos) e a ‘praxis’ política. Adriano Moreira cunhou o conceito. Neste momento, o leitor já deve ter identificado inúmeros exemplos em que tal se verifica, basta para isso pensar na nossa Constituição, ou, se preferir, na política de recursos humanos da sua empresa (com toda a certeza dirá qualquer coisa assim: as pessoas são o centro do nosso negócio), mas haverá tantos outros. Àqueles que procuram transparência e autenticidade, porque acreditam que a verdade é muito mais reveladora e agregadora que sucessivas mentiras piedosas cheias de compaixão, resta-lhes denunciar e bradar que “o rei vai nu”.

 

A nossa representação coletiva de estado-estrutura de poder transporta-nos instintivamente para o Terreiro do Paço, que na verdade nem é o centro do poder (talvez estejam lá apenas dois ou três ministérios dos 20 atuais!), o que só demonstra o quão remota é esta ideia no imaginário comum. O centralismo do estado é tão antigo quanto a nossa nacionalidade, por essa razão a nossa cultura política nunca admitiu o estado-comunidade que no fim de contas somos, porque invariavelmente foram “eles é que decidiram assim”, “eles é que mandam” e, depois, o respeitinho também é um valor absolutamente democrático.

 

Mas na Constituição ficou plasmada a ambição de um país verdadeiramente descentralizado que faria da proximidade aos cidadãos o eixo da sua ação e, assim, foram consagrados quase todos os tipos de governação: central, regional, local e, até, associativa! O espírito é verdadeiramente esse. A descentralização política aproxima os cidadãos do poder e abre caminho a uma efetiva responsabilização de quem governa. Ora, aquilo que acontece está longe da letra e do espírito da Constituição.

 

Houve um referendo à regionalização, assim ditou a letra da lei, que foi rejeitado por que, uma vez mais, se preferiu agitar medos atávicos de uma desunião nacional que poderia fazer perigar o estado-nação que somos, a tornar os processos de decisão mais eficientes, próximos e simultaneamente escrutináveis (olhos que vêm, coração já sente) pelos cidadãos. Talvez não tenha sido uma oportunidade perdida porque nem só de regionalização vive a descentralização.

 

Entretanto no afã de parecer, disfarça-se a falta de autenticidade com mais uma estruturazinha que pode dar ares a descentralização, assim foi com as CCDR’s, cuja utilidade poucos entendem retirados os fundos europeus que prodigamente distribuem, mas também com as desnotadas comunidades intermunicipais. Na verdade, é preciso que se faça alguma coisa para que tudo continue na mesma. E eis que se cria um Ministério da Coesão Territorial (veja, caro leitor, ao ponto a que chega a inautenticidade), que na falta de uma agenda política se converte num ‘interface’ facilitador de processos, como já foi admitido pela titular da pasta. Houve ainda tempo para uma alteração legislativa com “amplas” transferências de competências para as autarquias: ao nível da infraestrutura (manutenções de equipamento de educação e saúde, contratação prestadores serviços na educação, programas habitação social). Aquilo que realmente impacta, a superestrutura, no desenvolvimento e bem-estar das comunidades locais continuou na esfera do governo central. 

 

Se o governo disfarça, Rui Rio vai mais além. E baralha-se, baralhando-nos. Retira da cartola a deslocalização de um tribunal de Lisboa para uma latitude mais a norte, Coimbra. Aqui d’el Rei. Escolheu deslocalizar um órgão de soberania com juízes inamovíveis. Medição de forças entre órgãos? Ou tinha a intenção de afastar um órgão fiscalizador de pressões políticas que a proximidade dos fiscalizados promove? A verdade é que o primeiro passo para uma descentralização é dado com a deslocalização de serviços. A proposta não vingou e foi desprezada. Espera-se e exige-se, no entanto, mais de um homem que se reclama regionalista e pouco elitista.

 

Esta pandemia comprovou, ao longo do demasiado tempo em que alastra por cá, que a resposta mais veemente e objetiva foi, não raras vezes, assumida pelas autarquias no socorro às suas pessoas. Em contextos de crise esperava-se de um estado centralizador maior demonstração de capacidade de planeamento e de coordenação, o que não se verificou em muitas das decisões relativas a cercas sanitárias (que antes de o serem já não o eram) e à provisão ineficiente e por vezes tardia de materiais e equipamentos necessários (houve autarquias que chamaram a si essa missão sob pena de paralisia no combata à pandemia).

 

Os problemas urgem e as soluções tardam. É chegada a hora da sociedade civil e das instituições que a compõem terem a sua palavra. O aprofundamento da descentralização política é um caminho sem retorno, quer sob a forma de regiões ou através de uma transferência efetiva de competências para as autarquias ou federações que estas venham a estabelecer. Só deste modo é possível impor competitividade territorial na atração e fixação de investimento e pessoas. Nada menos que isto.

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