Antes de mais, desculpa-me, João Mário, por não me ter atrevido a falar do teu livro em improviso (mesmo se bem preparado) e ter optado por ler o que escrevi... Mas eu não gostava nada que, improvisando, pudesse esborratar a tua obra, cujo altíssimo valor aqueles que a conhecem reconhecem.
Por mim, sei que pouco adianto a esse reconhecimento porque, quando aqui estive, no sábado que foi o dia 16 de fevereiro de 2019, a ler umas tantas páginas sobre o teu livro “Sem Chão” (chamaram-lhe apresentação, mas eu não sei se foi isso, por considerar não ser adequado chamar apresentador de uma obra literária a quem só ganhou a vida a ajudar a aprender Matemática), pude então já constatar que muito numerosos foram aqueles que aqui estiveram demonstrando grande estima pelo João Mário Caldeira e também admiração pelo seu enorme talento, que é, pelo menos, tão grande como a terra onde nasceu.
Não me compete hoje a mim regressar a esse romance, mas ainda bem que me coube hoje outro livro do João Mário Caldeira: o “Discurso do Sol”, um livro dito de crónicas, mas repleto de uma escrita que, se eu soubesse bem o que é poesia, diria poética e própria para acordar emoções, sobretudo em quem é alentejano e parecia esquecido de que o era ou esquecido de que o Alentejo era assim.
Curiosamente, à volta deste livro estive em Serpa (na VOL) ao fim da tarde do dia 12 de setembro de 2009 e, se tive algum trabalho em descobrir o dia, a culpa é do João Mário que, na simpática dedicatória que então me escreveu no livro, não pôs a data completa: ficou-se pelo mês e pelo ano.
Este livro contém muito do que me fui esquecendo de escrever e faz-me reencontrar o que, afinal, não esqueci. Do Alentejo que existiu e do que ainda persiste, continuando a ser o Alentejo essencial sobre o qual escreveram, entre outros, Fialho de Almeida, Manuel Ribeiro, Brito Camacho, Manuel da Fonseca ou Eduardo Olímpio. E, quando citarem esses, façam-me lá o favor de acrescentar o nome de João Mário Caldeira. Façam-no com a certeza de a ele não estarem a fazer favor nenhum. Não tenho nenhumas dúvidas em dizer que o considero um dos grandes prosadores alentejanos, a cuja elegante e saborosa escrita está associada a sua condição de alentejano total que, não se limitando a conhecer apenas o Alentejo, não é alentejano de passagem.
“Discurso do Sol” dispõe-se em torno de duas partes principais: “A Cor dos Dias” e “A Voz da Gente”. Embora ele não separe da terra o homem, que é seu devedor (como o afirma a preciosa quadra), na primeira, que se subdivide em quatro, é a terra que sobressai, com as suas componentes animais, vegetais e minerais, ao longo das estações, que vão surgindo pela ordem por que as searas convivem com a terra, desde o tempo outonal da sementeira até ao verão da colheita e da debulha.
Não direi que, nestas quatro estações, se ouve Vivaldi, mas a leitura do texto foi música para os meus ouvidos. Semelhante a um coral, onde vão aparecendo quase todas as vozes com que a terra anualmente nos canta e que longamente ficaram a ressoar no espírito fascinado de quem ouviu esse canto durante dezenas de anos ou aqueles que constituem a vida inteira de um homem.
Pelo meio, o seu autor, que é habitante da terra e que a conhece, não só como as suas mãos, mas como o seu corpo todo, não se esquece de aludir a questões de lavoura, pecuária e cinegética e de proceder a relacionamentos que mostram a atenção que ele dedica a vastos campos do conhecimento.
Se pudesse, pegaria no livro e lia-vos tudo… Assim, cito, de raspão, sem me atrever a isolar curtas passagens para tentar pontualmente fazer prova do que afirmo. Prefiro deixar que as partes que vos leia não sejam abruptamente cortadas e prevaleçam completas, pelo menos ao nível dos parágrafos, de maneira a evitar que eventuais supressões lhes danifiquem o ritmo.
Desculpem. Não sou capaz de ler um livro sem também o ouvir. E tem de me soar bem para ser bem acolhido. É o caso deste. Escutem. E consintam que, em alguns poucos minutos, a minha seja a voz do João Mário.
[E leu-se o que foi possível: passagens d’ “A Cor dos Dias”, tentando demonstrar que aquela escrita vale não só pelo que ela evoca, mas também pela sua sonoridade, que faz querermos escutá-la.]
Na derradeira parte deste livro é o homem que sobressai, nas suas vozes e nos seus silêncios. Ao todo são 29 os textos, independentes, muito mais heterogéneos do que os da parte anterior, que expõem usos curiosos, que contam histórias e abordam comportamentos e peculiaridades do homem alentejano, nas suas relações uns com os outros, com o tempo (com o tempo inevitável, que passa e ninguém sustém, ou com o das intempéries, quer os suões quer os sirocos, que ele combate recorrendo a “agasalhos” sólidos e líquidos) e também com as palavras, que faz questão de usar sem desperdícios. Transbordantes de ironia são muitas das suas páginas. Por elas também não deixa de passar o cante, uma “coisa de respeito”, a elevação de um sentimento íntimo e não a encenação fulgurante de um espetáculo. Nelas se evoca a revista “A Tradição”, que se publicou em Serpa nos primórdios do século anterior e que teve importância nacional. Pelas suas páginas passa a nossa gastronomia, com descrições tão precisas e tão pormenorizadas, que criam água na boca. Por elas passam também episódios variados e que incluem batida aos javalis, o imprevisto encontro com um lobo, além desse fabuloso e universal “Agnus Dei” a cheirar a Guadiana… com tudo a dar matéria e tentação para quem tenha a ideia de sustentar ainda a existência de uma atitude (ou até de uma filosofia) alentejana, mesmo no mundo em que estamos, com todos a receberem a influência de tudo.
[E foram feitas leituras de excertos d’ “A Voz da Gente”, com muita pena de o texto a que atrás nos referimos (“Agnus Dei”), ter a extensão de seis páginas, o que não nos permitiu a veleidade de o ler, mas rematando-se com “Febre Sazonal”, que termina deste modo: “Entretanto o alentejano vai resistindo às contrapartidas que possa advir da cobiça de estranhos quando se trata de meter o dente em mimos silvestres que, desde tempos longínquos, foram aqui de muita estimação. E logo que pode aí vai ele, de navalha no bolso, saco de plástico na algibeira. Se o virem um pouco circunspecto não o incomodem, vai com ela fisgada, pensando no petisco.”]
Não vos vou ler o texto que começa na página 124, mas aceitava o convite que nele se encontra implícito e ia almoçar à “venda do Engrola”… o mais adequado dos posfácios para o “Discurso do Sol”, que é, já de si, por todos os motivos, incluindo os literários, um saboroso petisco.
* Adaptação (com anotações) do texto lido na Biblioteca Municipal Abade Correia da Serra, em Serpa, no dia 20 novembro de 2021