A vida. Tão pesada é a vida. Que injusto é acordarmos todos os dias dentro de nós, no fundo do nosso peito, inquietos, profundamente diferentes do sonho que tivemos. Que bom seria não termos peso nem compromissos e podermos ficar aninhados no útero da cama. Que bom seria sermos só pensamento, desligarmo-nos da parte física da nossa existência, anularmos a maçada do corpo, essa inutilidade, esse fardo. O despertar é uma coisa pesada, uma ignição lenta de sangue, uma combustão gaga dos sentidos, uma madorna horizontal de cabelos despenteados e olheiras. Muitas vezes nada em nós nos impele para nos levantarmos animados e espreitarmos o sol, ouvirmos a alegria desmedida dos pássaros, acreditarmos que tudo de bom vai acontecer, prepararmos o pequeno-almoço e comermos com apetite. Que bom seria podermos alhear-nos de nós próprios e apenas existirmos como uma ideia, um conceito, uma preguiça a pairar sobre a realidade como uma fina neblina. Que bom seria podermos escapar aos compromissos, às reuniões, aos horários, ao terrível destino de homem comum. Que bom seria às vezes não termos corpo, não aparecermos no espelho, não termos de escolher roupa, nem de contar as rugas, nem de acomodar os medos que já não cabem no coração, nem termos de sair para enfrentar a vida. Presos na gaiola do corpo, pesando quilos de carne e melancolia, somos moscas tontas batendo no vidro de uma janela fechada.