Diário do Alentejo

Ensino de cidadania num país ignorado, pobre e triste
Opinião

Ensino de cidadania num país ignorado, pobre e triste

Manuel Maria Barroso, técnico superior

25 de novembro 2021 - 18:00

Um dos mais interessantes clássicos do cinema foi o filme mudo, a preto e branco, de 1895, dirigido por Louis Lumière, sob o título "L'Arroseur Arrosé", que significa "O Regador Regado". Este filme trata, de forma algo metafórica, a ideia do efeito reflexo dos comportamentos humanos, bons ou maus.

 

Recorrendo a esta metáfora, é caso para dizer que, também, a natureza e os conteúdos da conhecida componente curricular escolar de "cidadania e desenvolvimento" estão a ter um efeito de "autodestruidor" no que deveria ser a plena aplicação, em contexto escolar e educativo, da ideia de Cidadania, tais são as posições dos radicalismos pseudoideológicos com que este processo tem convivido na sua génese e desenvolvimento.

 

Trata-se de um assunto em que as opiniões primárias e superficiais se sobrepõem, quer à razoabilidade fundamental, quer aos contextos de vida de cada pessoa. A ideia de “ensinar a cidadania”, em alternativa à ideia de se “aprender, fazendo, cidadania”, parece ter todos os ingredientes para se condenar ao fracasso uma excelente ideia cívica, tanto mais que nem consegue ter o mérito de responder às vontades ou às eficácia e eficiência pretendidas.

 

Tal como seria um “pesadelo metodológico” “ensinar a Liberdade”, em alternativa a “viver-se em Liberdade” para, progressivamente, se estruturar um sistema de valores sólidos de liberdade e identidades, também, a ideia de “cidadania”, nestes moldes, precisa de ser vivida, sentida e percebida. Tal como o “nó gordio”, enquanto “metáfora de um problema insolúvel”, também, estes temas, de tão simples que são, acabam por ser transformados em duras complexidades, sem sentido e voláteis, apenas por não se viverem com o realismo adequado.

 

A significativa dispersão explicadora e distante da razoabilidade, cuja resultante está à vista de todos nós, traduz-se, como “vemos, ouvimos e lemos”, numa divergência básica face à clássica ideia de ‘civitas’, enquanto espaço da “cidadania”. Em todo o caso, as opiniões sobre este fenómeno são inúmeras, tal como o seu objeto, quase sempre, em divergências metodológicas.

 

Um dos blocos de opinião e posicionamento público (e político!) sobre este fenómeno (“ensino de cidadania”) assenta numa tríade, a qual tem na sua estrutura a manifesta ausência de conhecimento da realidade de uns quantos legisladores neste domínio, o “cinzentismo” de alguns "fiscais" da aplicação de tais normas e, finalmente, os seus “promotores diretos”, ou seja, os responsáveis por tal "encomenda normativa" e “encarregados” da divulgação e da gestão de tais coisas.

 

A razão central dessas conhecidas dissonâncias (e são muitas…) centra-se nos fundamentos e no método a que se recorreu. Como se essa ideia de "cidadania (…)", aplicada em formato "calçadeira" ou a "ferros", cumprisse os desígnios de uma efetiva promoção da Cidadania, onde devessem imperar os princípios da Liberdade e da Democracia e, por isso, do bom-senso e da proteção das identidades pessoais, grupais, organizacionais e sociais, em geral.

 

Em contraposição, outro daqueles blocos mais significativos para esta diferença situa-se ao nível de encarregados de educação, de agentes educativos e de muitas instituições escolares e educativas. Neste grupo, mais que as suas conhecidas razões, relevam as graves consequências, em especial para os sujeitos centrais de toda a polémica: os alunos.

 

A realidade mostra-nos que se chegou ao profundo e substantivo disparate de haver retenções do percurso escolar e académico de alunos, onde a causa atribuída é a não opção pela frequência da dita área disciplinar de “cidadania”, pese embora, em muitos casos, tratar-se de alunos com elevados níveis de aproveitamento às disciplinas ditas “tradicionais”.

 

O epílogo destas divergências foi recentemente definido por uma decisão judicial, onde se verificou uma anuência ao referido princípio “absorvente” para o percurso escolar destes alunos, isto é, a retenção para os alunos que não tenham frequência (e por isso, também, não tenham avaliação) na dita matéria escolar. Trata-se de uma decisão que tem uma configuração questionável e, por isso, que pode (e deve) suscitar uma análise cuidada tendo em conta o que comummente se entende por liberdade, direitos e opções éticas e cívicas de cada cidadão, em especial, dos alunos aqui considerados e dos respetivos encarregados de educação.

 

Recordo que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga indeferiu a providência cautelar que pretendia travar o chumbo de dois alunos de Vila Nova de Famalicão que, por decisão dos pais, não frequentaram a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Tal decisão, datada de 18 de outubro, obrigará estes alunos a voltarem para o ano que frequentaram no ano letivo transato, quando ambos obtiveram média máxima (nível 5) nas disciplinas gerais.

 

Independentemente dos aspetos específicos de natureza técnica, científica, cívica, legal ou outros, não há dúvida que se trata de uma matéria que merece algum cuidado na análise e determinação, onde não é difícil constatar, também, a incoerência e a fragilidade, em especial, da forma ligeira com que tudo tem sido tratado.

 

Em outra dimensão, mais ligeira e de forma irónica, tudo isto pode levar-nos a imaginar que se tais normas educativas se mantiverem de forma contemporânea com a "teimosia" dos encarregados de educação destes estudantes, crianças e adolescentes (por enquanto... pois, a idade não perdoa!) – ou se tais comportamentos forem continuados por outras gerações - face às idiotices de quem está nas várias "trincheiras", poderemos correr o risco de observar (quem por cá ainda estiver vivo!) que uns quantos "velhotes", porventura em centros geriátricos, são altamente qualificados sob o ponto de vista escolar e uns medíocres seres face às "bitolas" (regras), herdando ou cultivando, assim, o que "estalinisticamente" lhes quiseram inculcar no tempo em que tinham "sangue na guelra" e quando ainda não tinham capacidade de decisão própria… Um inútil acervo de palermadas civilizacionais, éticas e cívicas!

 

Nestes binómios do "deve-haver" pseudoideológicos, entre um vasto chorrilho de cretinices, é caso para se recorrer à ironia e "avaliar" a dimensão da "infelicidade" destas crianças e adolescentes, privados da doutrina (e dos exemplos!) "exalada" por um certo "clã" de idiotas, "mentores dessa cidadania bafienta" [onde as suas próprias "normas de cidadania" (salvo seja!) estão em permanente incumprimento... quiçá porque as suas decisões sejam eclipsadas pelo efeito das "turbulências" das suas "viagens", através de um país ignorado, pobre e triste.]

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