Muito recentemente veio a público no jornal “Correio da Manhã” a notícia da destruição de uma importante ‘villa’ romana junto de Évora. O teor do texto é grave, até porque, logo no início, vem escrito o seguinte: “As notícias de destruição de património têm sido uma constante no Alentejo e, desta vez, o ‘infrator’ é o próprio Estado, com a ‘conivência de quem tem a função de proteção desse mesmo património’, diz a comunidade académica”. Bom, para ser mais correto, devo começar por esclarecer que tive conhecimento do teor do texto algumas horas antes de ser publicado, pelo que o seu autor já não foi a tempo de o corrigir. Nessa altura fiquei a saber que a dita “comunidade académica” está ligada à Universidade de Évora, porque apenas André Carneiro surge a dar a sua opinião. Mas será que foi uma opinião correta e inocente?
Antes de escrever este texto procurei informar-me junto dos principais interlocutores (Direção Regional de Cultura do Alentejo e Infraestruturas de Portugal) para melhor entender o que realmente se passou, sobretudo para tentar perceber se o Estado Português cometeu alguma irregularidade, como vem preconizado na notícia do “Correio da Manhã”.
Ao contrário do que o leitor possa eventualmente pensar, em menos de 12 horas obtive todas as respostas necessárias sobre a situação. Em primeiro lugar, como consta na lei, a empresa Infraestruturas de Portugal (IP) promoveu a realização de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA), onde se inclui a caracterização arqueológica da área onde se vai implantar a obra (via férrea, estações e zonas de empréstimo de terras).
A análise arqueológica foi feita por arqueólogos creditados pertencentes a uma empresa reconhecida no mercado. Neste estudo os sítios arqueológicos, incluindo o Seixinho 1 (‘villa’ romana cuja destruição está em causa), foram todos mapeados e o relatório entregue à IP e à Direção Regional de Cultura Alentejo (DRCA), sendo aprovado por esta última.
Com base nos dados transmitidos nesse relatório foi feito o projeto onde os projetistas tentaram não afetar em demasia os sítios arqueológicos. Mas qual foi o problema então? Bom, nos anos 80 o professor Jorge de Oliveira informou ter descoberto um sítio arqueológico romano. Parece-me evidente que quem fez o trabalho de prospeções arqueológicas para o EIA se limitou a fazer eco daquilo que tinha sido indicado pelo descobridor. Não posso acreditar que uma prospeção no local não tivesse permitido perceber que ali existia uma estrutura arqueológica tão importante.
Para que o nosso leitor possa perceber a gravidade daquilo que estou a escrever, podemos equiparar uma ‘villa’ romana a um grande “monte” alentejano. Quem é de Beja, certamente conhecerá o monte da Almocreva, junto do Penedo Gordo. Imaginemos uma ‘villa’ com as mesmas dimensões desse “monte”. Já imaginou a quantidade de telhas que passados 1500 anos ainda poderiam ser observadas à superfície, juntamente com outros objetos? Pois, qualquer arqueólogo com um mínimo de conhecimento sobre a época romana teria percebido o que ali estava. Mais ainda: hoje em dia, os arqueólogos que fazem (de forma séria) trabalhos de prospeção arqueológica solicitam a colaboração de topógrafos para proceder à exata delimitação das áreas de maior e menor concentração de materiais arqueológicos (representadas, respetivamente, a vermelho e amarelo na cartografia e/ou ortofotomapas). Se tal tivesse acontecido, a IP teria podido elaborar um projeto onde a nova ferrovia não atravessaria a ‘villa’ romana em causa.
O que acabei de escrever pode não parecer importante, mas na realidade se se tivesse procedido dessa forma, teríamos evitado a possibilidade de destruição de uma importante estrutura arqueológica e tudo o que se seguiu. Em que medida? Ora, apenas no decorrer do acompanhamento arqueológico dos trabalhos é que foi possível perceber que o sítio é uma ‘villa’ romana de grandes dimensões, bem como a existência de mosaicos. Nesse momento foi necessário parar aquela frente de obra, para se proceder à escavação arqueológica de toda a área de afetação do sítio, dentro da área expropriada (atenção ao que acabei de escrever, que iremos voltar ao assunto mais adiante).
A paragem por largo tempo (o necessário para a intervenção) conduziu a um grande atraso numa obra (que é “apenas” um Projeto de Interesse Nacional) e a um prejuízo de vários milhões de euros. Voltamos ao que escrevemos atrás: se no EIA estivesse a indicação de uma ‘villa’ e da sua área certamente nada disto teria ocorrido.
Tudo o que se seguiu decorreu dentro dos trâmites normais: a DRCA obrigou à escavação arqueológica da área de afetação da obra, dentro da zona expropriada, no âmbito do que se entende por “conservação pelo registo”. Posteriormente, a DRCA e a IP procuraram definir uma proposta exequível do ponto de vista das engenharias que permita a não destruição das estruturas intervencionadas. Vejamos, não é possível alterar o traçado da ferrovia, porque ali vão circular comboios de alta velocidade e não podem ser criadas curvas e contracurvas. Assim, terá de se definir outra forma, como por exemplo um aterro estruturado. Mas vamos ver no que resulta o estudo que está a ser feito.
Nas palavras do doutor André Carneiro, publicadas na notícia do jornal “Correio da Manhã”, a situação é muito grave porque “o que está a acontecer é uma destruição de património. Mesmo que as IP possam garantir a não destruição durante a execução da obra, a passagem de comboios de mercadorias vai alterar as condições da ruína a curto e médio prazo”. Este especialista garantiu ainda que “em Portugal, não há nenhuma ‘villa’ romana escavada na totalidade” e que “esta seria uma oportunidade única para o fazer. O conhecimento que daí poderia surgir seria fundamental, bastava para isso cumprir a lei do património”.
Ora, vamos por partes. Em 1º lugar, não se trata de uma destruição arqueológica, como já vimos e cumpriu-se com a Lei do Património; Em 2.º, creio que São Cucufate e Milreu foram quase totalmente escavadas, o mesmo acontecendo com Freiria; E em 3.º lugar, é feio tentarmos aproveitar uma obra para fazermos a investigação da nossa vida, utilizando verbas destinadas a uma obra em vez de investirmos num projeto de investigação.
Ao contrário daquilo que foi veiculado por André Carneiro, o facto de se tratar de um projeto financiado com fundos europeus não obriga a que seja feita uma escavação integral do sítio arqueológico, pois apenas se pode intervencionar a área expropriada. Ninguém pode promover a escavação arqueológica num terreno que não é seu. Mas face ao interesse em escavar integralmente uma ‘villa’ romana, alerto para o seguinte: André Carneiro é docente na Universidade de Évora que é proprietária da ‘villa’ de Pisões, junto de Beja, bem como de umas largas centenas de hectares que a rodeiam e que foram arrendadas (pela própria Universidade) a empresas espanholas para plantio de amendoais e olivais superintensivos. Por que motivo não utiliza a Universidade de Évora o dinheiro dos arrendamentos para escavar o que falta nessa ‘villa’ (a mais importante do concelho de Beja), para promover a conservação das estruturas que se encontram à vista e para melhorar os acessos a quem a queira visitar? Fica o repto!
Em suma, quer a DRCA, quer a IP, atuaram conforme mandam os procedimentos, nada tendo sido destruído até ao momento e mesmo que seja necessário proceder-se ao desmantelamento de algumas estruturas, estas já foram registadas por arqueólogos. Este tipo de notícias, acompanhadas por comentários de docentes universitários pouco habituados àquilo que é o verdadeiro trabalho arqueológico no terreno, sobretudo em contexto de obra, só serve para desestabilizar e criar confusão. O pior de tudo é que o mesmo Estado que é por eles criticado é aquele que os chama a pronunciar-se sobre determinadas situações em vez de ouvir os arqueólogos que têm mais experiência de trabalho no terreno, o que tem conduzido a uma desvalorização da arqueologia. E temos muito que fazer para melhorar o trabalho e a vida dos arqueólogos.
Se há coisa que não gosto de ver são injustiças, muito menos contra a DRCA que tem feito um trabalho hercúleo na defesa do nosso património, mesmo muito depauperada de recursos técnicos e humanos. Por isso a defesa que aqui apresento.