Diário do Alentejo

Pé descalço
Opinião

Pé descalço

José Saúde, jornalista

19 de agosto 2021 - 10:00

O homem ao longo dos tempos absorveu inestimáveis realidades que o encaminharam para sublimes condescendências. As gerações de outrora conheceram benfeitorias que fizeram do ser humano uma personalidade forte, destemida e competente no exercício das funções. O universo desportivo conheceu semelhantes primórdios onde o praticante se viu arreigado a circunstâncias que lhe consolaram a alma. Noutros tempos o dogma constatado no estigmatizado extrato social que a plebe considerava de índole baixo, passava pelo inevitável crivo que grande parte das crianças andava de pé descalço.

 

A ligeireza da mente afirma que essa imagem fez parte do meu quotidiano, enquanto miúdo, e que ainda hoje está bem patente na minha já cansada memória. Felizmente, nunca passei por tão inusitada rotina. No rigor de um inverno, que não dava tréguas, presenciei garotos a quebrar o gelo que se acumulava numa lagoa, ou a entregarem-se a pequenas jogatanas de futebol com uma bola de trapos, num imaginativo “estádio” impregnado de cardos, ou de fragmentos de vidro que proliferavam por tudo o que era sítio e que resultavam em excessivos cortes nos seus pés literalmente descalços.

 

Essa irrefutável exatidão faz parte de histórias passadas e que paulatinamente se foram diluindo na viagem de um tempo agora sem tempo. Aliás, no infinito de um horizonte enegrecido, esfumam-se recordações que persistem em não cair no limbo do esquecimento, sendo certo que se aconselha conduzi-las para a ribalta. Aliás, as situações comoventes que testemunhámos são agora meras peças de fantasia num anfiteatro onde os artistas conhecem palcos substancialmente antagónicos.

 

Num cantinho da minha sagacidade, revejo uma tarde de quarta-feira em que a antiga Mocidade Portuguesa promoveu um encontro de atletismo no campo do Liceu de Beja e que reuniu pessoal da Escola Industrial e Comercial de Beja e do Liceu. Nessas épocas, as atividades desportivas entre estes dois estabelecimentos de ensino trouxeram à estampa excelentes momentos de convívio e de despiques individuais. Nas diversas especialidades havia normalmente os candidatos. Recordo uma seleção feita pelo professor Rony, indiano, que contemplou o nosso saudoso amigo Cardoso, um rapaz que morreu em Moçambique, na guerra colonial, como concorrente da Escola na especialidade de fundo. Deu-se o tiro de partida e o Cardoso apresentou-se à largada com os pés descalços.

 

É óbvio que o Cardoso fez todo o percurso sem sapatilhas e não se interessou com a sua classificação final. A sua opção foi participar no evento e nada mais. O pé descalço era, afinal, uma normalidade para crianças, alguns já adolescentes, com a qual convivíamos diariamente. No jogo da bola da miudagem não existia, também, essa dicotomia. Era comum depararmo-nos com moços que a primeira coisa que faziam quando chegavam a um improvisado recinto de jogo era sacar dos sapatos, tirar as meias e toca a jogar descalços. Realidades doutros tempos e logicamente impensáveis na época presente!

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