Diário do Alentejo

Letras miúdas, tretas graúdas
Opinião

Letras miúdas, tretas graúdas

Mário Frota, Associação Portuguesa do Direito ao Consumo

06 de agosto 2021 - 14:25

Sempre que se fala de contratos de adesão (de contratos prontos-a-assinar) nesta sociedade em aceleração (a sociedade do pronto-a-comer, do pronto-a-vestir, do pronto-a-assinar…) acode ao espírito a letra miudinha de que os seus autores se servem para que passem o mais despercebidas possível àquele que é atraído para o enlace.

 

Letras miudinhas em que se escondem as ratoeiras, com que se montam os ardis a que os consumidores não escapam.

 

As pessoas, muitas vezes, não têm hipótese de escolha: ou assinam os contratos ou não têm acesso aos produtos e serviços que, por esse modo, fornecedores e prestadores de serviço se propõem vender ou prestar, respetivamente.

 

Ainda em tempos, numa das decisões colegiais de um tribunal superior, se estranhava o facto de numa página formato A4 (a página padrão) haver nada mais nada menos que 270 linhas de cláusulas ali predispostas. Quando nos lembramos do papel almaço de 35 linhas…

 

Mas há equívocos no ar ao afirmar-se até em programas de referência, nas televisões, que as pessoas se responsabilizam por assinar – quantas vezes sem ler – dada a extensão e o corpo de letra desses arrazoados, prenhes, não raro, de cláusulas leoninas, pejados de cláusulas abusivas.

 

Um contrato é uma lei entre partes. Lei em que, como no caso, não é fruto de um verdadeiro acordo e de uma acomodação de vontades. Não, é a lei que o fornecedor, mercê da sua posição dominante no mercado, impõe ao consumidor, sem apelo nem agravo.

 

O que muitas vezes nos esquecemos é que há regras para que essa “lei” (a do mais forte) possa prevalecer. Com efeito, as cláusulas que preenchem o contrato singular, formado com base nos formulários de adesão, têm de ser comunicadas ao consumidor. E se o consumidor não perceber o que nelas se encerra, o seu significado, o seu sentido e alcance, terá de exigir explicações, que o informem, que lhe prestem os esclarecimentos devidos. Mas a informação é dever do fornecedor. Tem de a prestar sem ter de ser cutucado É direito seu.

 

Aliás, isto está em conformidade com a lei. Há duas obrigações a que se não pode furtar o fornecedor. A primeira é de comunicar as cláusulas do contrato ao consumidor. Não se trata de lhe apontar tão-só o lugar onde deve assinar. Tem de lhe comunicar as cláusulas. E o segundo dever é o prestar os esclarecimentos devidos.

 

O dever de comunicação, tal como a lei o estabelece, tem de ser cumprido escrupulosamente pelo contratante:

 

“1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.

 

2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência.

 

3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efetiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.” (Lei das Condições Gerais dos Contratos - LCGC: artigo 5.º).

 

Com a informação outro tanto se passa:

“O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspetos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique” (LCGC: n.º 1 do artigo 6.º).

 

Ora, se tal acontecer (se não houver comunicação nem informação; ou comunicação sem informação) nem sequer o contrato se terá, em princípio, por regularmente formado.

 

Com efeito, a este propósito, a LGCC (no seu artigo 8.º) diz simplesmente que tais cláusulas são de excluir (ou nem sequer as considerar incluídas) nos contratos singulares. Ei-lo:

 

“Consideram-se excluídas dos contratos singulares:

  1. a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas…;
  2. b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efetivo;
  3. c) As cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real;
  4. d) As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes.”

 

Também as letras miudinhas têm o mesmo destino… quando se diz que são de excluir as cláusulas que pela sua apresentação gráfica passem despercebidas a um contraente normal colocado na posição de contratante real.

 

E as consequências no plano jurídico são: ou se aproveita o contrato através de cláusulas que a lei predispõe para preencher o vazio; ou não obstante o recurso a tais disposições e às regras de integração dos negócios, sobrevenha uma indeterminação insuprível de aspetos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé, o que conduz à nulidade do contrato.

 

Por conseguinte, a lei tem desde há mais de 35 anos soluções, que só o desconhecimento da maioria pode alimentar os mitos de que as letras miudinhas são sempre inevitáveis e se o consumidor as não ler “está feito” porque das suas consequências jamais se poderá libertar.

 

E não é patentemente assim. Fique o registo!

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