Diário do Alentejo

Expiação e catarse: há desastres da guerra que não se apagam
Opinião

Expiação e catarse: há desastres da guerra que não se apagam

Mário Beja Santos, jurista

05 de agosto 2021 - 17:00

Rui de Azevedo Teixeira foi oficial de comando em Angola, doutorou-se em Língua Portuguesa e possui bibliografia ligada à investigação sobre a literatura da guerra colonial, ficção e ensaio. O seu “O Elogio da Dureza” (Gradiva, 2021) conta-nos a história de Paulo de Trava Lobo Ferreira, alguém com sérios problemas de identidade familiar, dado desde a juventude à leitura, que passou meteoricamente pela Universidade de Coimbra, onde se aborreceu de morte e ofereceu-se como voluntário para a tropa, seguindo para o curso de oficiais milicianos.

 

Como tinha poucos recursos, ficava por lá aos fins de semana. A palavra “comando” galvanizou-o. Entretanto começou a escrever um diário a que apodou de diário incerto, com muitos comentários literários e apreciações do meio regional de onde provinha. Nisto, damos um salto, Paulo já voltou da guerra em Angola, regressou a Vila Velha do Mar. “A guerra, como uma forma de iniciação, tinha-o metamorfoseado. Dera-lhe dureza, um código de silêncio e um sentimento de superioridade em relação aos não iniciados”. Refugia-se no diário incerto, anda à deriva, não tinha verdadeiramente regressado.

 

(…) E saltamos para a operação “Empurra Tudo”, temos escalpes, facas na barriga a girar como o corno de um touro numa colhida, gente degolada, um pequeno massacre. Paulo extasia-se com a natureza esplendente, sente-a como o princípio do mundo, mais guerra, mais tiros, Paulo acasalou com a Luxa e com a empregada desta. Saberemos muito mais sobre a vida operacional que leva na Zona Militar Leste. Há interrogatórios violentíssimos, mais orelhas cortadas, sucedem-se as operações e as notas íntimas no diário incerto, pois certezas já há muito poucas, crescem as dúvidas do que por ali anda a fazer:

 

“Na noite de despedida daquelas terras do calor e dos pretos, Paulo sentiu como nunca o Império a começar a desfazer-se e a morrer dentro de si. A ironia partia-o por dentro – a cada operação feita, tornava-se, cada vez mais, melhor operacional e, cada vez menos, crente na guerra que fazia. A violência já era benfeita, desinteressada e só a estritamente necessária. E ocorria-lhe cada vez mais a imagem do digno homem preto que, encolhido, desceu do passeio, em Luanda, para ele poder passar à larga”.

 

Voltamos ao processo revolucionário, Paulo voltou aos estudos, foi ganhando a pulso os seus títulos universitários, mas neste formato de montanha-russa voltamos a Angola, Paulo agora anda no Mayombe, fala-nos nos estouros metálicos dos trovões, na espessa massa vegetal, de cheiro intenso e meio adocicado, nos temíveis campos de minas, estamos há vários dias na Operação Pantufada. “Cinco metros à frente de Paulo, a minha rebentou levando com ela as pernas do furriel Tavares. O sangue esguichava das femorais. Tinha lido algures que o coração bombeia com tanta força que pode atirar o sangue com dez metros de distância (…) A consciência do furriel Tavares dissolvia-se. Em menos de meia hora, ficou enrugado como um velho. O olhar apagou-se. Morreu docemente, nem sequer teve um estremeção final”. Apanhou-se muito armamento nesta operação. Enquanto eles progrediam no Mayombe, o Estado Novo caíra em 25 de Abril.

 

Já bacharel, visita em Vila Figueira Luís Pereira de Sá e Souza, descendente da mais antiga nobreza de espada, Paulo prepara-se para voos mais altos enquanto ensina; e novo voo memorial até Angola, onde se entrou na guerra civil. Deu aulas na ilha da Madeira, aqui se vai apaixonar. Volta a casa dos pais, sentiu motivos de sobra para nunca mais voltar a falar deles. E há uma bala furada, acompanha Paulo como uma graça do destino. Talvez este elogio da dureza seja uma catarse depois de tantos horrores da guerra ter encontrado o fundo da sua inutilidade.

 

Um testemunho símbolo para as novas gerações, para saberem o que viveu a de Paulo e todos os outros que experimentaram o mal e foram tentados por instintos sanguinários.

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