Diário do Alentejo

O exame
Opinião

O exame

Vítor Encarnação, professor

05 de agosto 2021 - 15:20

Quando as coisas são profundas, à memória tanto se lhe dá que tenham passado três meses ou cinquenta anos porque a memória tem um tempo próprio e as emoções é que mandam nele. Eram oito horas de um dia antigo, terá provavelmente sido ontem de manhã, e o sabão azul e branco voltava uma vez e outra às minhas orelhas, lava-te bem atrás das orelhas, disse-me a minha tia na noite anterior, parece-me que foi anteontem à noite antes de me ir deitar, esfrega essas pernas, lava bem esse cabelo. Eram oito e dez, mais década menos década, quando eu me comecei a vestir, trusses de algodão, calção de fazenda, meia branca, camisa creme de golas imensas, lencinho de assoar. Depois o pente na mão da minha tia, por entre caracóis, acho que ainda não eram brancos, a forçar uma marrafa, eu a ter vergonha de me olhar ao espelho, nem parecia eu, a minha tia a desviar-me o cabelo, deixa lá ver se te lavaste bem atrás das orelhas, depois umas pinguinhas de perfume, depois um fio de prata. Eram oito e meia quando a minha tia desligou o ferro, acabei agora mesmo de ouvir o sino da igreja, a bata branca imaculada, eu ainda não conhecia a palavra, tanto que se aprende de um dia para o outro, três botões à frente, as mangas compridas, um bolso do lado esquerdo. E lá fui eu, rua fora, os sapatos de verniz a escorregarem na calçada, fazer o exame da quarta classe, meninos a um lado, meninas a outro.

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