Diário do Alentejo

‘Simplex’ só para contentores?
Opinião

‘Simplex’ só para contentores?

Alberto Matos, membro da Coordenadora distrital do Bloco de Esquerda

22 de julho 2021 - 10:10

Com Odemira a sair da moda, é bom lembrar que os problemas não desaparecem simplesmente por deixarmos de falar deles. Desde logo a pandemia de covid-19 que permanece e até se agravou, nem a exploração desenfreada de imigrantes, nem as péssimas condições de habitação, nem os problemas sociais e ambientais do perímetro de rega do Mira que atingem a expressão máxima na barragem de Santa Clara. Vamos por partes.

 

A propósito da falta de habitação decente para os trabalhadores agrícolas, as associações patronais e a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) criticaram a passividade do Governo e a inoperacionalidade da Resolução do Conselho de Ministros n.º 179/2019, de 24 de outubro.

 

Não vou repetir as críticas a esta solução que, a pretexto de permitir a instalação de alojamentos temporários para trabalhadores sazonais (dez anos, para começar), abre a porta ao crescimento de “aldeias de contentores” num parque natural, autênticos guetos para imigrantes, sem vida social, onde se acorda e se adormece à beira do local de trabalho.

 

Foi pronta a resposta do Governo às exigências dos patrões da agricultura intensiva, ao aprovar uma nova Resolução do Conselho de Ministros (RCM), n.º 69/2021, de 4 de junho, que veio introduzir alterações à anterior 179/2019. Espanta-me que este assunto não tenha merecido discussão pública séria, pois as alterações não são de pormenor, apesar de a nova RCM as classificar de mera “simplificação procedimental”.

 

Chamo a atenção para os artigos 9 e 11 desta RCM:

 

9 — Determinar a dispensa do procedimento de autorização de instalações amovíveis e ligeiras, previsto na alínea b) do n.º 5 do artigo 46.º do Regulamento do Plano de Ordenamento do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

 

11 — Determinar que os pedidos de instalação ou regularização de IATA são:

  1. a) Dirigidos à câmara municipal (…) que no prazo de cinco dias convoca, para ter lugar nos 10 dias seguintes, uma conferência procedimental deliberativa, por meios telemáticos;
  2. b) Objeto de uma decisão única, por parte da conferência procedimental deliberativa, que substitui a pronúncia de todas as entidades competentes da administração central e local;
  3. c) Decididos no prazo de 15 dias desde a entrada do pedido, sob pena de deferimento tácito.

 

O diabo, como sempre, está nos detalhes, em especial na última alínea.

 

Conhecendo o ritmo de funcionamento da burocracia autárquica e de todos os organismos de Estado implicados (agricultura, ambiente, saúde, administração interna, pelo menos…) alguém acredita que uma decisão séria possa ser tomada no prazo de 15 dias? E nem sequer se diz se são 15 dias úteis ou de calendário…

 

Já nem falo do tempo necessário à realização de inspeções às IATA que se pretenda implantar ou alterar, para verificar se estas condizem no terreno com os projetos apresentados. Sejamos sérios: em 15 dias é impossível qualquer decisão fundamentada. Restam duas hipóteses: ou os projetos são ratificados de cruz ou tacitamente deferidos ao fim de 15 dias.

 

A ser aplicada, esta RCM abre caminho ao total arbítrio e à cumplicidade com os poderosos interesses instalados no território do PNSACV e dos concelhos de Odemira e Aljezur. Estes nem precisam de pressionar para ver os seus projetos de multiplicação de contentores aprovados; é só esperar 15 dias que a burocracia empate…

 

Esta RCM pode resumir-se numa expressão: “simplex” contentores. Pior era impossível, apesar de tudo o que este Governo já nos habituou, por ação e omissão, face à agricultura intensiva no sudoeste e no Alqueva. Uma autêntica vergonha!

 

Os interesses instalados no território são simbolizados por uma marca centenária – Driscoll’s – com origem na Califórnia, o que faz lembrar o velho ‘slogan’: “sem imigrantes ilegais não há colheitas na Califórnia”. Interesses tão poderosos que dominam as associações de produtores, vendendo as patentes e comercializando a produção; interesses representados na CAP e na ABM – Associação de Beneficiários do Mira.

 

Eis-nos de regresso ao nó górdio do perímetro de rega do Mira: a água. Com a barragem de Santa Clara a 50 por cento da sua capacidade, aproximamo-nos perigosamente da cota 109 abaixo da qual o atual sistema de bombagem deixa de funcionar. Permitir que a gestão da barragem e do sistema de rega construído por investimento público continue nas mãos da ABM é como pôr a raposa a guardar o galinheiro.

 

Os senhores da agricultura intensiva comportam-se como “donos da água”, cortando-a aos pequenos agricultores e pondo em risco o abastecimento público. Chegaram ao ponto de apresentar uma fatura de mais de 13 mil euros à Junta de Freguesia de Santa Clara-a-Velha para manter o caudal ecológico do Mira e o espelho de água junto à aldeia. O Estado e a APA têm de intervir de imediato e sem mais burocracias. Aqui sim, precisamos de um “simplex” água pública.

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