Diário do Alentejo

Vírgula
Opinião

Vírgula

Vítor Encarnação, professor

09 de julho 2021 - 10:25

A minha escola não começou com a matrícula. A minha escola começou antes de tempo porque, perto da minha casa, ao fim da tarde, Dona Catarina dava explicações aos alunos da Escola Primária. Eu era o auxiliar educativo, o assistente do giz, o operário do apagador, o arrumador de cadernos, o pastor do relógio, o aparador de lápis, o encarregado da Vírgula. Quando o som do giz branco comia o silêncio do quadro negro entoando a palavra Ditado, os alunos da quarta classe abriam os cadernos e eu ficava feliz. E a professora começava a ditar: Parábola dos sete vimes. Era uma vez um pai que tinha sete filhos. Quando estava para morrer, vírgula. E aqui, precisamente aqui na vírgula, vinda da porta que dava para o quintal, uma cadela pequenina e franzina entrava em cena e ladrava três vezes. E Dona Catarina, dona da Vírgula e do ditado todo, mandava-a embora e lá ia eu, armado em pajem da pontuação, acompanhá-la até aos seus aposentos. E a cada breve respiração do complemento, que é como quem diz a cada vírgula, do lado do quintal dos diospiros maduros, lá vinha outra vez a Vírgula interromper a sintaxe do discurso. E nós ríamos todos muito. Que bom que era que uma frase não fosse só letras de ponta a ponta, pois assim as palavras vinham montadas em quatro patas e abanavam o rabo quando nos viam. Ainda hoje ouço os textos a ladrar três vezes a meio das frases. Ponto final parágrafo. A Vírgula morreu.

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