Quando em junho do ano passado fui um dos signatários de uma petição para a manutenção da continuidade dos ateliers instalados na Casa da Cultura da responsabilidade da Câmara Municipal de Beja temia o que hoje é o presente deste serviço da cidade. Com efeito após esta fase de mais um severo confinamento provocado por esta demoníaca pandemia, este é um dos serviços da autarquia que se manteve encerrado “por tempo indeterminado” durante muito tempo, reabriu recentemente, mas perdeu todas as suas valências como o núcleo de internet, os 26 ateliers, o ensaio de bandas, espaços cedidos para associações e exposições já anunciadas e pura e simplesmente anuladas.
O que mudou? Por que razão um serviço que funcionava bem, uma verdadeira instituição cultural da cidade se mantêm inoperante? Porque já não funcionam os ateliers permanentes da Casa da Cultura? Porque se alteraram os horários, sabendo-se que a Casa da Cultura encerrava às 23:00 horas mas as bandas tinham autorização para ensaiar pela noite dentro?
Alguns ateliês também se realizavam para lá desse horário, como forma de cumprir o interesse dos utentes. Havia inclusivamente ateliês que se realizavam ao sábado de manhã e ao domingo, mesmo com a Casa da Cultura encerrada ao público. As reuniões e encontros das associações também se realizavam a qualquer hora, normalmente ao fim de semana, quando lhes era possível. Tudo isso acabou.
O mesmo se passou com o ensaio das bandas. Como a Casa da Cultura encerra à noite, simplesmente não há ensaios. As bandas partiram, na sua maioria. Os monitores dos ateliês também…
Na verdade, ao encerrar a Casa da Cultura ao final da tarde perdeu-se a possibilidade de realizar todo e qualquer ateliê, já que funcionavam em horário pós-laboral, o que facilitava a vida aos seus diferentes utilizadores.
As respostas a todas estas questões têm a ver com a nova forma de gestão dos assuntos culturais da cidade.
Quando em janeiro de 2020, foi nomeada uma nova chefe da divisão de cultura da autarquia, rapidamente foi percetível a necessidade obsessiva de proceder a “uma limpeza” na Casa da Cultura e não só. Mesmo antes de ouvir ou falar com todos os intervenientes, coisa que nem sequer tentou fazer, como referem todos os monitores, a nova chefe de divisão acabou por destruir e denegrir todo valoroso trabalho feito nos 10 anos anteriores por Paulo Monteiro, anterior responsável pela Casa da Cultura. Trabalho aliás não só muito meritório, dado que para além da dinâmica constante da casa conseguiu contrariar a tendência de êxodo de muitos colaboradores que abandonaram a cidade nos últimos anos, como também nunca foi posto em causa por parte do atual executivo e foi mesmo alvo de elogios, espero que sinceros, nas inúmeras atividades que promoveu ao longo dos últimos anos.
Assim, num espaço “vivo” da cidade onde se podiam ver exposições temporárias, ler um livro de banda desenhada, participar num dos 26 ateliers disponíveis, praticar capoeira, ioga, guitarra ou simplesmente beber um café num dos agradáveis pátios laterais (até isso desapareceu com um corte radical das árvores que tornavam o local bem aprazível) viu-se progressivamente suspenso todo o plano de exposições previstas, ateliers, formações e atividades paralelas.
Posteriormente, associações, grupos de interesse, ou bandas de rock foram intimados a retirar todos os seus pertences e a desocupar as instalações e os gabinetes que utilizavam, passando mesmo a imagem de que se tratava de um bando de malfeitores e abusadores. Quanto aos utentes dos serviços? Desprezo completo. – O senhor só pode vir à Casa da Cultura em horário noturno? Temos pena, está fechada…
Para culminar, com mestria, um novo conjunto de regras, códigos, horários desfasados das necessidades dos utentes, regulamentos e ordens avulsas e errantes, de forma arbitrária, autoritária e arrogante, algumas até contraditórias com as opiniões do seu superior hierárquico que é o presidente da Câmara. A chefe da divisão de cultura da autarquia conseguiu gerar os anticorpos suficientes para que a maioria dos que estivessem dispostos a dinamizar o espaço e a promover a cultura na cidade o não queira continuar a fazer.
Provavelmente sem se aperceber, ou então por pura mesquinhez, a nova chefe de divisão criou um problema à autarquia, dado que muitos destes agentes culturais/ associações sempre colaboraram em iniciativas da Câmara Municipal de forma altruísta, voluntária e de forma não remunerada, apenas por pura dedicação à cidade. Quebrada a confiança, a única solução é a autarquia recrutar e contratar os serviços de empresas culturais privadas, o que, convenhamos, para além de não desenvolver a cidade se torna muitíssimo mais oneroso. O que ficou de tudo isto? Um enorme vazio e uma mão cheia de nada!
Neste momento, o edifício, apesar de não estar encerrado, perdeu completamente a valência que esteve na sua génese e à qual se destina. Em vez de atividade cultural para os cidadãos bejenses a autarquia decidiu nele instalar o serviço da caixa social e os serviços da educação! Para além disto, apesar das obras ao nível das casas de banho, acentua-se visivelmente a sua degradação, situação que desde há muito tempo é reportada aos diferentes executivos, e que a autarquia sabe que requer um volumoso investimento nomeadamente ao nível de coberturas, isolamentos e infiltrações, e para o qual não existe provavelmente verba até à conclusão do mandato.
Mas o mais grave é o retrocesso cultural a que a cidade chegou. Ao ser colocada à frente da divisão da cultura da autarquia uma pessoa que, embora podendo ter todas as competências administrativas, revela uma enorme falta de sensibilidade e de conhecimento da forma como a cultura e os agentes culturais e associativos funcionam e se comporta de forma autista e prepotente ao bom estilo do “agora mando eu”, todos temos a perder. Mais, liquida-se a possibilidade de desenvolver a criatividade e a sensibilidade artística de novos criadores como acontecia com a Beatriz Potchkeva, a Inês Machado, a Teresa Ribeiro, a Joana Romão, miúdas muito novinhas, mas com um talento inegável, e que encontravam no espaço da Casa da Cultura, nomeadamente no atelier de ilustração e banda desenhada, motivo para troca de ideias e a possibilidade de poderem aprender com desenhadores experientes.
Numa cidade tão pequena como Beja todos se conhecem. Na área cultural o meio ainda é mais reduzido, e por mais “limpezas” que se façam as pessoas, os movimentos associativos, as pessoas que querem ver a cidade crescer em termos culturais não se podem inventar porque são sempre as mesmas e são as que cá estão e vivem.
Se quer manter o nível e reconhecimento cultural que a cidade teve até esta nomeação, Beja não se pode dar ao luxo de perder ou deixar partir talentos inatos como Susa Monteiro, Paulo Monteiro, Silvestre (Véte), Carlos Páscoa, Rita Cortêz, André Pereira, Maria João Careto, só para falar na área da ilustração e banda desenhada.
A cidade também não pode perder serviços/ instituições que são referências nacionais como a Bedeteca de Beja, que apesar de saber que não vai fechar dispõe agora de um horário que não serve claramente aos seus utentes. A Bedeteca é uma das quatro existentes em Portugal com edição própria e independente de uma Biblioteca Municipal, organizadora do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja e que é motivo de elogio de todos.
Ainda num dos últimos fins de semana foi confrangedor verificar que um projeto interessante como o Futurama, relacionado com a promoção da arte e cultura contemporânea, tenha sido apresentado em Beja pela ministra da Cultura, na presença de vários presidentes de autarquias limítrofes, escolas e instituições da cidade que abraçaram o projeto, e a autarquia tenha ficado de fora do mesmo, alegadamente porque “para Beja não interessa a arte contemporânea…”
Beja não pode ficar à mercê de uma dirigente que ignora ou rejeita a cultura artística nacional e internacional, assim como os possíveis projetos, parcerias ou formas de captação de artistas para a cidade, ou que simplesmente ignore ou promova o diálogo com os que aqui vivem e querem dinamizar a cultura.
Foi claramente um erro de ‘casting’ e, meu caríssimo Paulo Arsénio, não vale a pena vir a público defender esta nomeação pois sabe tão bem como eu como ela põe em causa o bom trabalho que tem realizado à frente da autarquia nos últimos quatro anos e pode mesmo comprometer a confiança dos munícipes para outubro. Pelo menos a minha está comprometida.