Eu não faço por mal, mas eu não sei estar em casa. Quando eu era pequeno, mal acabava de engolir o café com leite e um bocado de pão com manteiga, eu e o sol ainda rasteiros, abalava de casa e andava dias inteiros nessas ruas com outros como eu, voltávamos ao meio-dia para comer as sopas e aí íamos nós outra vez, inventávamos bilharetas até cada mãe chamar pelo seu filho, elas numa ponta da vila e a gente na outra. Os meus costumes nunca me ensinaram a estar em casa, nunca houve nada dentro dela que me prendesse, a minha vida foi feita fora de portas, fosse brincadeira, namoro ou trabalho. Tudo de sol a sol. A casa sempre foi para mim uma coisa noturna, uma guarita onde eu ia comer e dormir. Quando me casei pouco ou nada mudou, era só chegar do trabalho, deixava a balsa e abalava para a taberna e passava lá noites inteiras com outros como eu, cantando modas, contando partes, bebendo vinho e comendo petiscos. Nestes tempos modernos é fácil virem criticar estes hábitos, tivessem vivido como me ensinaram e tinham feito igual, as pessoas são filhas de um pai que se chama tempo e de uma mãe que se chama usança. Quis Deus que a patroa fosse primeiro do que eu, se dantes já pouca coisa me prendia à casa, agora é que já não há lá nada. Se me encontrarem na rua não se zanguem comigo, digam-me apenas que a minha mãe me está a chamar, ela numa ponta na vila e eu na outra.